segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Copa e Olimpíadas: o que realmente está em jogo?

A preparação das cidades brasileiras para os megaeventos esportivos já apresenta inúmeros problemas. Entre eles, obras aprovadas sem licitação e ameaças de despejos de milhares de famílias.

Por Débora Prado
A escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo em 2014 e dos Jogos Olímpicos em 2016 foi amplamente comemorada. Não poderia ser diferente num País em que o orgulho nacional e a paixão pelo esporte são traços culturais marcantes. O que as comemorações ocultaram, entretanto, são os muitos problemas relacionados à forma como é feita a preparação para estes megaeventos esportivos: são obras aprovadas sem licitação, ameaças de despejos de milhares de famílias, transferência de grande quantia de recursos públicos para poucos grupos privados, intervenções realizadas na cidade que ferem as legislações de planejamento urbano e proteção ambiental, extrema falta de transparência e nenhuma participação do conjunto da população nas decisões que já estão sendo tomadas em nome dos jogos.
Alguns atores do governo, da iniciativa privada e das entidades ligadas à Copa e Olimpíadas têm decidido como será a preparação das cidades e alocação dos recursos para os megaeventos, tendendo a reforçar a concentração de renda e poder já existentes. Enquanto isso, na grande mídia, há pouco ou nenhum espaço para importantes questionamentos: o que realmente representa esta preparação? Como o capital atraído para sua realização é distribuído? Como são planejadas as reestruturações urbanas? Quem ganha e quem perde com estes processos? A Caros Amigos conversou com moradores das cidades sedes dos eventos, professores, pesquisadores, intelectuais, parlamentares e integrantes dos movimentos sociais para tentar responder a estas perguntas e mostrar o ‘lado B’ da Copa e das Olimpíadas, ignorado diariamente na campanha pelo orgulho nacional.
“Faz parte da nossa cultura gostar do local onde nascemos e vivemos, as pessoas são apegadas as suas cidades e querem que haja eventos nela. Só que esse sentimento saudável se transforma numa armadilha contra a própria população. É preciso desfazer a cortina de fumaça e mostrar que sim, gostamos de jogos, queremos os eventos, mas sem autoritarismo, sem corrupção e sem comprometer o orçamento público pelos próximos 20 anos”, explica Carlos Vainer, professor do IPPUR/UFRJ (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Os problemas surgem quando as transformações legitimadas pela Copa e Olimpíadas abrem caminho para práticas como o desrespeito a direitos fundamentais e o mau uso dos recursos públicos. A professora da FAU-USP e relatora da ONU para o direito à moradia adequada, Raquel Rolnik, explica que os megaeventos são uma estratégia que as cidades têm utilizado para promover transformações urbanísticas, com uma dupla serventia: “de um lado, a mobilização que ele provoca em nível nacional e internacional acelera a possibilidade de investimentos e transformações, ao mesmo tempo em que, na competição entre as cidades pela atração de investimentos internacionais, o megaevento traz visibilidade. E, ainda, como se trata de megaeventos esportivos, também tem um apego emocional, que justifica um verdadeiro estado de exceção, uma situação em que as regras normais de como as coisas devem ser feitas não precisam ser cumpridas”.
Ela relata que, com o estado de exceção gerado, tanto o Rio de Janeiro, quanto outras cidades brasileiras que receberão jogos do Mundial de Futebol, estão implementando intervenções que em situações corriqueiras ou demorariam ou teriam uma série de entraves do ponto de vista jurídico-administrativo, ou seriam alvo de resistência por parte da população. “Já estão sendo aprovadas várias excepcionalidades para a Copa do Mundo em relação à lei de licitações, isenção de impostos, a não necessidade de algumas salvaguardas que normalmente são exigidas, que vão desde alterações de Planos Diretores (lei municipal que estabelece diretrizes para a ocupação da cidade) que não passam pelos processos normais. Elas já estão sendo votadas pelas Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e pelo Congresso Nacional – em todas as esferas, isso já está acontecendo no Brasil”, relata a professora.
De fato, somente na noite do dia 24 de novembro, o Senado Federal aprovou duas medidas provisórias destinadas especificamente à realização da Copa e Olimpíadas. Uma delas ampliou o limite de endividamento dos municípios em operações de crédito destinadas ao financiamento de infraestrutura para os eventos. Além disso, houve isenção fiscal para a importação de materiais que serão usados nos jogos. As duas MPs foram aprovadas em tempo recorde – em uma semana com apenas duas sessões de poucos minutos na Câmara e Senado.
Com o estado de exceção em curso, grande parte das intervenções feitas nas cidades não estão seguindo parâmetros estabelecidos em documentos internacionais e nacionais, como o “Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”, a Constituição Federal de 1988, o Estatuto das Cidades de 2001 e os Planos Diretores dos municípios. “Na verdade, nenhuma dessas intervenções faz parte de um processo de planejamento urbano, muito menos de um processo de planejamento participativo, que é aquilo que prega o Estatuto das Cidades”, explica Rolnik.
Como relatora da ONU para o direito à moradia adequada, a professora conta que já tem recebido denúncias de despejos e ameaças de despejos, principalmente de comunidades de baixa renda e de assentamentos precários, em várias cidades do Brasil, em função de obras de infraestruturaou ligadas aos equipamentos da Copa do Mundo. “Tudo aquilo que o Brasil se comprometeu como signatário do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - que diz claramente quais são os procedimentos adequados que devem ser adotados e seguidos no caso de ser ecessária uma remoção - não está sendo aplicado. Às pessoas que estão sendo removidas não é dada a chance sequer de ter informação sobre o projeto, sobre qual vai ser a alternativa oferecida a ela para o reassentamento. Também não é dada a chance de se estudar alternativas que evitem ou minimizem as remoções”.
Isto tudo com um agravante: o financiamento das intervenções é majoritariamente público. “São recursos financeiros, patrimoniais (terras), espaços públicos, que são transferidos sob regras de exceção para grupos privados, sem debate público, em negociações nas quais o povo não é consultado. Há uma canalização de recursos públicos para interesses privados, para as construtoras, as empreiteiras, as empresas de telecomunicações e marketing. E as empresas envolvidas são aquelas mesmas que estão nas listas entre as maiores contribuintes das candidaturas, as que fazem doações para todas as campanhas políticas, como a Odebrecht, a Camargo Corrêa, a Votorantim, o grande agronegócio. E, evidentemente, esses recursos são pagos por todas as outras rubricas, pelo transporte popular que não está sendo feito, pelo saneamento que não é feito e por aí vai”, destaca Vainer.
A Odebrecht, por exemplo, somente entre os estádios cujas construtoras já estão definidas, está presente nos consórcios a frente da construção Arena do Corinthians, em São Paulo, da Arena Fonte Nova, em Salvador, da Arena Pernambuco e na reforma do Maracanã, no Rio de Janeiro. Somados, os recursos previstos para estas obras atingem mais de R$ 2,6 bilhões. O economista Luiz Mário Behnken, coordenador da Rede de Mega Eventos Esportivos (REME) e membro do Fórum Popular do Orçamento, avalia que cada megaevento esportivo deve custar em torno de R$ 30 bilhões.
Para o professor Carlos Vainer, com esse procedimentos, as cidades brasileiras se transformam não apenas em um “grande negócio, mas num negócio corrupto e com o aval da presidência da república, financiamento do BNDES, e, como as informações não são transferidas para a população, também com apoio do povo”. Ele considera que a privatização do espaço público é absoluta. “Nos Jogos Pan-americanos de 2007 você não podia nem levar um sanduíche para o estádio, porque o Comitê Olímpico Brasileiro havia feito um contrato com uma rede de fast food que assegurava a ela a exclusividade de fornecer alimentação dentro do estádio”, exemplifica.
Os problemas que surgem com a falta de transparência na preparação para os jogos atingem, inclusive, o âmbito esportivo. Antropólogo e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Marcos Alvito foi um dos idealizadores da Associação Nacional dos Torcedores (ANT), que luta pela defesa do futebol brasileiro como arte, cultura e um patrimônio popular. Para ele, o apreço pelo esporte também tem sido usado nessa armadilha e o megaevento funciona como uma espécie de nuvem midiática que desarma a opinião pública em relação às transformações que vão ser operadas.
“O gosto pelo esporte é usado pela mídia e pelo poder público para legitimar interesses de pequenos grupos. No caso da Copa do Mundo isso é evidente. A expulsão do povo dos estádios de futebol está sendo financiada com dinheiro do próprio povo. A reforma do Maracanã, por exemplo, vai custar R$ 705,6 milhões e representa a quarta reforma do estádio nos últimos 11 anos”, afirma, complementando: “ela vai diminuir em quase 10 mil o número de pessoas que poderão ir ao estádio. Ou seja, onde já couberam 200 mil pessoas um dia, depois desta reforma, caberão 76 mil. O preço do ingresso só sobe e o campo também vai diminuir. O projeto do Maracanã, na verdade, não é para os torcedores, é o projeto de um shopping, que além de praça de alimentação vai ter uma praça de futebol ali no meio”, avalia.

Modelo de cidade
De acordo com a professora Raquel Rolnik, os megaeventos se inserem no contexto de um novo modelo de cidade. “Havia uma ideia corrente entre os anos 1950 e 1970, nos países desenvolvidos, de uma cidade planejada, com o acesso universal, em que a política de planejamento urbano é vista como uma atividade do Estado, como uma dimensão pública. Isso acabou sendo substituído por um paradigma de ‘empresariamento’ urbano, ou seja, os processos de transformação das cidades ocorrem conectados e dirigidos para a promoção de negócios e atração de investimentos, numa linha direta entre o modelo de política urbana e o capital, sobretudo, o capital imobiliário”.
Vainer explica que os grandes eventos estão relacionados justamente a esta nova modalidade de planejamento que surge nos anos 1980 e que torna a cidade uma empresa a concorrer no mercado com outras ‘cidades-empresas’, na busca por capitais, investimentos e pelos próprios eventos.
“Um dos grandes problemas deste modelo é que, ao competir, a cidade busca esconder tudo aquilo que não interessa aos negócios. Transformada em empresa, o dissenso é banido da cidade porque ameaça a competitividade. A política – a forma pela qual os agentes coletivos vão ao espaço público manifestar seus dissensos – é abolida, porque pode prejudicar os negócios. As regras são a da flexibilização, da cidade de exceção, o que quer dizer, na verdade, ‘tudo o que for necessário para viabilizar os negócios’. É o que eu chamo de democracia direta do capital, as decisões são tomadas numa ação direta do capital privado com o poder público”, descreve o professor.
Para Vainer, o megaevento radicaliza o modelo da cidade empresarial e da exceção. “Basta você ir atrás de todas as leis específicas, a FIFA não paga imposto, os hotéis pra Copa e Olimpíadas não vão pagar IPTU, todas as regras do direito de construir, do uso do solo, inclusive em termos fiscais, todas as regras são suspensas”, exemplifica.
Além de beneficiar a poucos, este modelo tem aspectos perversos: “se o objetivo é fazer da cidade uma vitrine, é preciso esconder tudo aquilo que gera críticas, como a pobreza e a miséria. A cidade é reduzida a sua faceta de exportação, é voltada para o exterior e não para os seus cidadãos. O exemplo da África do Sul está aí para lembrar isso, os pobres foram tirados das ruas, os vendedores ambulantes foram tirados das ruas, para não poluírem a paisagem. No Brasil, em Fortaleza, milhares de pessoas já estão ameaçadas de despejo, para a construção de estradas para a Copa. No Rio de Janeiro, vão construir vias de transportes, todas voltadas para a Barra da Tijuca, atendendo ao interesse da especulação imobiliária, enquanto 80% dos fluxos de transporte, das viagens feitas pelos citadinos, estão em outra direção”.

O palco dos megaeventos
Dentre as cidades brasileiras, a capital fluminense se tornou palco dos megaeventos. Após receber os jogos Pan-americanos em 2007, a agenda segue intensa: o Rio receberá, além da Copa de 2014 e Olímpiadas de 2016, outros eventos esportivos de grande porte, como os Jogos Mundiais Militares, neste ano, e a Copa das Confederações, em 2013.
O legado promete ser semelhante ao do PAN: endividamento público, remoção de favelas, infração de direitos humanos e aumento do apartheid social já marcante na cidade. Um exemplo dessa tendência é o mapa traçado para reformulação do sistema viário carioca. Marcos Alvito relata que o BRT (Bus Rapid Transit) Transoeste – uma espécie de corredor de ônibus que ligará a Barra da Tijuca a Santa Cruz – é muito mais voltado aos interesses da especulação imobiliária do que à população.
“Ele não interliga a cidade, na verdade, ele liga os pontos mais distantes da cidade à Barra da Tijuca, que passa a ser um novo centro. E de quebra, onde essas BRTs passam? Justamente em cima de comunidades de trabalhadores. Então, num só projeto, se cria o transporte para a Barra, remunera as empresas de ônibus, e, além disso, atravessa a favela, que tem que ser removida. Aí é mais um terreno liberado para a indústria de construção e para o setor imobiliário”, cita. Desse modo, os megaeventos vão valorizar uma das áreas já mais valorizadas do Rio de Janeiro, enquanto o subúrbio segue abandonado.
Outras políticas que não estão diretamente ligadas aos jogos reforçam ainda mais este caráter. “Se você ver o mapa das UPPs (Unidades da Polícia Pacificadora), elas não começaram pelas áreas mais conflagradas da cidade. Se há um plano de segurança, o lógico é começar por onde tem mais problema. Aqui não, aqui começa pelas áreas nobres. As UPPs, na verdade, são um corredor que vem lá do aeroporto até a Barra da Tijuca, então elas funcionam como um cordão sanitário”, considera Alvito.
Raquel Rolnik explica que, de fato, a geografia das UPPs corresponde a áreas de interesse no projeto da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos.
Fonte: Revista Caros Amigos

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