quinta-feira, 29 de março de 2012

48 anos depois de 1964


Por Jéssica Maiara R. Martins e Pedro César Batista*
            O Golpe contra a democracia 

Com o argumento de que era preciso impedir que os comunistas tomassem o poder, os militares brasileiros, orientados e organizados pela CIA – conforme extensa bibliografia (1) – com o uso da violência, do arbítrio e da mentira, derrubaram o governo constitucional do presidente João Goulart no dia da mentira, 1º de abril de 1964.


O Brasil vivia um período de crescente efervescência política. Os estudantes e os trabalhadores do campo e da cidade estavam mobilizados nas ruas, escolas e fábricas lutando pelos interesses nacionais e populares: reforma agrária, educação pública e gratuita, nacionalização das empresas estrangeiras e a proibição das remessas dos lucros das multinacionais para o exterior. Mesmo assim havia entre o governo de Goulart e a sociedade um diálogo aberto (2) .


Nesse mesmo período o mundo vivia o auge da Guerra Fria. Cuba ousava construir uma pátria socialista sob o nariz dos EUA, com um grupo de jovens barbudos revolucionários desafiando o poder americano. O bloco socialista, comandando pela URSS, apontava para o mundo a possibilidade de construir uma nova relação econômica entre os países – solidária e internacionalista – através do Conselho para Assistência Econômica Mútua (COMECON). Esse foi um período, com destaque para a segunda metade da década de 1960, marcado por grandes mobilizações da juventude por todo o mundo, entre elas a Primavera de Praga, as manifestações contra a guerra no Vietnam, pela paz mundial e pelo fim das ditaduras na América Latina, com destaque para o Brasil.


Ao mesmo tempo, abaixo da Linha do Equador, os generais não vacilaram. Para impedir a chegada dos comunistas ao poder valia tudo. Foram seis golpes militares no continente, apenas entre 1964 e 1966 (3). Os direitos civis, a liberdade, a democracia e a legalidade foram jogadas, sem nenhum pudor, na latrina. O saldo foram milhares de torturados, perseguidos, exilados e mortos. No Brasil as direções sindicais, estudantis e os partidos políticos foram cassados. As liberdades individuais deixaram de existir. O terror e a tortura tomaram conta do país.


Em 1968 veio o AI 5: o golpe radicalizado, com a violência se tornando a norma aplicada pelos generais governistas. Os bate-paus, torturadores, infiltrados e agentes a serviço da doutrina de “segurança nacional” não deixaram por menos. Os quartéis e prisões se transformaram em centros de torturas, ninguém escapava. O general Emílio Garrastazu Médici transformou o país em um campo de guerra, intensificando a resistência por parte dos que ainda lutavam. A repressão foi mais violenta. Em cinco anos as principais lideranças das organizações de esquerda foram dizimadas, e os corpos até hoje estão desaparecidos. Centenas. Os sobreviventes foram aqueles militantes que conseguiram ir para o exílio.


Apesar de toda essa escuridão imposta à sociedade, os meios de comunicação passavam a imagem de um país em progresso, com uma seleção vitoriosa na Copa do Mundo de 1970, no México, com todo um glamour transmitido pela recém criada Rede Globo de Televisão – que por sua vez servia aos interesses dos golpistas – e o famoso slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o”, como parte de uma campanha que visava colocar a população contra aqueles que combatiam o arbítrio institucionalizado.


              A resistência volta às ruas 

A partir de 1978, a população voltou às ruas. Ocorreu a greve de mais de 30 dias no ABC paulista, que colocou em cheque a ditadura. No ano seguinte, a União Nacional dos Estudantes (UNE) foi reconstruída, a Anistia, não ampla, geral e irrestrita, foi conquistada e os sindicatos retomaram suas lutas. As lideranças cassadas começaram a retornar ao país, e novas surgiram. As mulheres, os jovens, os Comitês em Defesa da Amazônia, e as comunidades das periferias dos grandes centros começaram a se reorganizar. No campo, os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STR), antes liderados pelos interventores impostos pela ditadura, voltaram a ser dirigidos por lideranças autênticas, vindas dos movimentos de luta camponesa (4). As eleições diretas, inicialmente apenas para governador, ocorrem em 1982, o que se torna um movimento irreversível. Em 1984, milhões de brasileiros foram às ruas exigir eleições diretas para presidente, o que possibilitou a eleição de Tancredo Neves, pelo Colégio Eleitoral, para a Presidência da República, derrotando Paulo Maluf – o candidato dos militares.


O Congresso, eleito em 1986, teve o importante papel de elaborar uma nova Constituição para o Brasil, que ficou conhecida como “Constituição Cidadã”. Em 1989, a campanha da Frente Brasil Popular unificou vários setores organizados da sociedade em apoio à candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, levando mais uma vez a população às ruas, mas agora sem a ameaça da violência e opressão declarada dos militares. Contudo, o eleito foi Fernando Collor de Melo, que sofreu impeachment dois anos depois, após denúncias de corrupção e a mobilização da população, com destaque para os Caras Pintadas.


Em 2002, o Brasil elege pela primeira vez um operário, oriundo da resistência sindical, que teve papel determinante para por um fim ao governo militar, Lula. Esse foi reeleito em 2006 e elegeu em 2010 sua sucessora, Dilma Rousseff, com uma ampla base aliada, formada tanto por partidos oriundos da resistência à ditadura, como por partidos que sustentaram o governo militar (exemplo: PP, antigo Arena e PDS/PPB).

             
                  E agora, onde estamos (vamos)? 

Passaram-se 48 anos e o que ficou do tempo de medo e escuridão vivido nos anos de ditadura? Os militares que controlaram o governo por mais de vinte anos impuseram uma anistia que colocou no mesmo patamar torturados e torturadores, diferente de todos os países do mundo que também tiveram ditaduras, mas julgaram os que atuaram a margem da lei e da democracia. Aqui os torturadores ficaram isentos de qualquer punição e julgamento pelos crimes praticados em nome do Estado. Decorridas décadas ainda há centenas de pessoas que não tiveram seus paradeiros localizados, sabe-se apenas que foram presos, torturados e depois desaparecidos. Seus corpos até hoje não foram localizados. E os seqüestradores, fardados ou civis, não aceitam sentar no banco dos réus e rugem a qualquer sinal de justiça por parte da sociedade e do Estado.


Já no que concerne ao campo, no período entre o golpe e o seu fim, as melhores terras foram apropriadas por poucos, financiadas por recursos públicos de bancos estatais, destinadas aos grandes projetos – como o Projeto Jarí, que concentrou milhões de hectares entre o Pará e o Amapá (5). A ditadura adotou a aplicação do modelo econômico liberal, tornando-se serviçal e dando amplos poderes às transnacionais, criando as condições para que a produção e a riqueza cada vez mais ficassem concentradas nas mãos de poucos. A população camponesa deslocou-se para os grandes centros urbanos, confiante que conquistaria uma vida melhor e mais digna, mas se deparou com uma realidade de desemprego e miséria social, sendo obrigada a viver em periferias, sem as mínimas condições de habitação, trabalho, saúde e educação. Enquanto isso, as terras produtivas foram fatiadas entre alguns poderosos brasileiros e estrangeiros, que tiveram seu poder econômico e político fortalecido ao longo desses anos, dando-lhes grande poder de influência sobre o Estado e seus respectivos poderes. Essa realidade de injustiça e impunidade levou ao assassinato seletivo das lideranças de trabalhadores rurais, que combatiam a ocupação e formação dos latifúndios, mobilizando a população camponesa para lutar pela reforma agrária. Enquanto essa triste realidade ainda se dá na zona rural brasileira, nas cidades as lideranças foram, em grande número, cooptadas pelo aparelho de Estado, processo intensificado após o governo Lula (6).


A juventude que acreditava na possibilidade da construção de uma sociedade diferente e defendia o socialismo, sem os pilares do lucro, da exploração do trabalho e do acúmulo do capital, em grande parte, deixou-se levar pelo canto e encanto das luzes das marcas mais famosas e da moda. Muitos sonhos dos que lutaram antes do golpe se confundiram na poeira dos escombros da queda do muro de Berlim e na débâcle da URSS. Os sonhos mais comuns da atualidade se tornaram acumular riquezas e consumir. O mercado é o Deus onipresente e todo poderoso. O que virá depois deste tempo somente a sociedade poderá apontar, caso se disponha a romper o marasmo que levou a pulverização das lutas, enquanto parte dos mesmos que provocaram o medo dos comunistas em 1964, conseguindo dar o golpe, continuarem no poder, agora aliados com os novos governantes, que passaram a reproduzir a prática do clientelismo e da despolitização da sociedade.


O que percebemos hoje é que o sentimento da rebeldia coletiva e revolucionária foi minimizado, em parte substituído por um sentimento individualista para a sobrevivência dentro desse “salve-se-quem-puder” do tempo presente. Porém, felizmente ainda há alguns focos de rebeldia e indignação, com setores da sociedade que, apesar da desesperança, ousam atuar e combater o sistema, o neoliberalismo e seus valores (ou a falta destes). Destacam-se, nesse sentido, os movimentos feministas, do campo e da cidade, a juventude através do movimento estudantil, ambientalista e de luta contra a corrupção, os movimentos de luta pela reforma agrária, os educadores populares, os grupos de economia solidária e os variados segmentos organizados da sociedade civil. Ainda há carência de um projeto coletivo entre os que continuam a luta pelos antigos ideais e os que iniciam novas lutas, no entanto, as ações dos mais variados grupos ainda apontam a possibilidade de alcançar um futuro mais justo, fraterno e solidário para o povo brasileiro.



Jéssica Maiara R. Martins – cientista política 

Pedro César Batista – jornalista e escritor. 



(1)Ver, por exemplo, As veias abertas da América Latina (4ª edição, 1996), de Eduardo Galeano; A ditadura envergonhada (2002), A ditadura escancarada(2002), e A ditadura derrotada(2003), todos de Elio Gaspari (2002); e Combate nas trevas, Jacob Gorender(1987).

(2)Ibdem.
(3)Eduardo Galeano (1996)
(4)BATISTA, Pedro C. João Batista, mártir da luta pela reforma agrária. 2ª edição 2008, Expressão Popular.
(5)Ver BATISTA, Pedro C. (2008) e www.lucioflaviopinto.com.br
(6)RICCI, Rudá. Lulismo,Da era dos movimentos sociais à ascensão da nova classe média brasileira. Brasília, Fundação Astrojildo Pereira, 2010.

domingo, 25 de março de 2012

Entre a crise econômica e as lutas e revoluções

Escrito por Alejandro Iturbe   
 Um mundo convulsionado
 
 Este ano, a situação mundial pareceu “se acelerar” pela combinação entre os sintomas evidentes da continuidade da crise econômica internacional aberta em 2007, um avanço nos processos da luta de classes (especialmente no mundo árabe e na Europa) e a crise política na condução do imperialismo norte-americano.
 
Ao analisar a situação mundial, é evidente que 2011 não está sendo um ano “tranquilo”. Pelo contrário, fatos muito importantes ocorrem em tal velocidade (as revoluções no mundo árabe, por exemplo) quando já surgem outros, como as crises de pagamento de vários países e as lutas de resistência na Europa. E, sem solução de continuidade, a crise entre democratas e republicanos nos EUA, colocando este país à beira do default e provocando um grande “ataque de nervos” em todo o sistema financeiro mundial, que já estava bastante “sensibilizado”.
 
Nenhum desses eventos é fruto da “casualidade”. Tampouco o fato de que ocorram de forma simultânea. Pelo contrário, eles (e sua combinação) são o resultado das profundas contradições econômicas e políticas acumuladas pelo capitalismo imperialista nas últimas décadas, exacerbadas pela crise econômica internacional e pela luta de classes.
 
Configura-se, assim, o que chamamos de “situação revolucionária mundial”, cujos aspectos centrais apresentaremos de forma resumida neste artigo.
 
Um debate prévio
 
É necessário retomar previamente alguns aspectos de um debate que vem desde a década de 1990: qual foi o saldo, para a situação mundial, da queda da URSS e da restauração do capitalismo nos chamados países do “socialismo real”?
 
Em primeiro lugar, assinalamos que, para a LIT-QI, a restauração do capitalismo ocorreu antes da derrubada dos regimes stalinistas em muitos desses países. Por exemplo, na ex-URSS, o capitalismo foi restaurado a partir de 1986, sob a direção de Mikhail Gorbachev e do Partido Comunista, e o regime stalinista só caiu em 1990.
 
Ou seja, foi a burocracia stalinista que restaurou o capitalismo e não as mobilizações de massas contra esses regimes, que ocorreram anos após a restauração. Inclusive, em vários países (China, Coreia do Norte, Cuba), o capitalismo foi restaurado, também pelos PCs como na ex-URSS, sem que esses regimes caíssem. Essa sequência temporal vai contra a tese do “triunfo histórico do capitalismo” (defendida por seus propagandistas) e da “derrota histórica das massas” da qual levariam décadas para se recompor, caracterizada por grande parte da esquerda.
 
Para a LIT-QI, pelo contrário, a restauração foi uma derrota importante, mas não foi uma derrota histórica da classe: poucos anos depois, as massas derrubaram e derrotaram os regimes ditatoriais dos partidos comunistas que haviam conduzido a restauração.
 
A perda da referência socialista
 
De modo muito resumido, esses processos tiveram, entre outras, duas consequências altamente contraditórias. A primeira foi que a restauração eliminou as referências da realidade para as perspectivas da tomada do poder pelos trabalhadores e a construção do socialismo. Ainda que essas referências estivessem profundamente deformadas e deterioradas, elas existiam. Ao deixarem de existir, desaparece também, na consciência das massas, a perspectiva da tomada do poder e do socialismo para os processos da luta de classes.
 
Por outro lado, a burguesia aproveitou para lançar uma forte contraofensiva ideológica sobre a “derrota do socialismo”, o “triunfo do capitalismo” e o fim da época da luta de classes e das revoluções.
 
Hoje, essas afirmações chocam-se duramente com a realidade em dois aspectos centrais. Em primeiro lugar, a crise econômica e suas violentas consequências para a classe trabalhadora mostram o verdadeiro e feio rosto do capitalismo e sua impossibilidade não mais de melhorar, mas de manter os níveis de vida da população. Em segundo lugar, a revolução árabe volta a colocar no centro a mobilização e as revoluções de massas como motor das transformações históricas.
 

A queda do aparato stalinista mundial
 
A segunda consequência dos referidos processos foi a queda do aparato mundial do stalinismo. Para nós, este sim foi um resultado de importância histórica, superior e predominante em sua influência sobre as consequências mais conjunturais da restauração capitalista.
 
O aparato stalinista mundial foi o responsável pelas principais derrotas do movimento operário internacional, desde a década de 1920, ou levou suas vitórias revolucionárias para o campo da conciliação de classes. Assim, permitiu a sobrevivência do capitalismo imperialista.
 
O aparato stalinista era a principal trava para o avanço da revolução socialista mundial. É impossível entender a fluidez e a dinâmica dos processos atuais, como a revolução árabe, sem considerar o fato de que já não existe esse aparato mundial para barrá-la da forma como o fez com muitas outras revoluções no passado.
 
É verdade que existem aparatos velhos ou novos que podem frear ou desviar revoluções: correntes stalinistas nacionais, o chavismo, o fundamentalismo islâmico radicalizado, o neorreformismo etc. Mas eles são bem mais frágeis nessa tarefa do que era esse poderoso aparato mundial.
 
Por isso, dizemos que sua queda foi um salto de qualidade que aprofunda a possibilidade de surgimento e desenvolvimento de novos processos revolucionários e oferece condições muito melhores para a superação da crise de direção revolucionária, tarefa central para a qual a LIT-QI volta seus esforços.
 
A crise econômica e suas raízes
 
Em agosto de 2007, com o estouro da bolha especulativa no mercado imobiliário e de hipotecas dos EUA, iniciou-se uma crise econômica internacional. Apesar de ter começado no sistema financeiro e tê-lo golpeado com muita força, desde o início caracterizamos que não se tratava de uma simples “crise financeira”, mas que era o resultado das profundas contradições estruturais acumuladas pelo sistema capitalista imperialista nas últimas décadas. Ao mesmo tempo, caracterizamos que não se tratava simplesmente de uma “crise cíclica”, das que se produzem a cada 6 ou 8 anos, como as analisadas por Marx em O Capital, mas de uma crise de profundidade, impacto e duração muito maiores. Nisto coincidimos com analistas burgueses como Roubini, Stiglitz ou Krugman, que a qualificavam como a principal crise do capitalismo imperialista desde 1929.
 
Para que a atual crise tivesse tal magnitude, vários fatores se combinaram:
a)      O processo que Marx chamou de “tendência à queda da taxa de lucro” (o embrião de todas as crises econômicas do capitalismo) foi profundamente agravado pela “hipertrofia do sistema financeiro mundial”. Isto é, o crescimento do setor especulativo a limites quase absurdos, como reflexo das tendências mais profundas do capitalismo imperialista de ser cada vez menos produtivo e cada vez mais especulativo e parasitário.
b)      A divisão internacional do trabalho iniciada na década de 1990 baseava-se centralmente no funcionamento atrelado e articulado “das duas locomotivas” associadas, com os EUA como potência hegemônica e a China como auxiliar dependente. Durante alguns anos, o aumento do setor financeiro foi, junto com a expansão da demanda que gerou, um dos motores do crescimento dos anos anteriores. Agora, por um lado, diminui a demanda dos países imperialistas (principal mercado para as exportações chinesas); por outro, devido a inúmeros fatores, começa a haver um declínio das fabulosas taxas de lucro que as empresas obtêm na China e este país começa a ter uma importante capacidade ociosa (superprodução).
c)      A crise econômica estoura com toda sua magnitude e se vê potencializada após o fracasso do projeto Bush (o “século americano”: um domínio bonapartista indiscutível do mundo) devido a sua derrota no Iraque. A derrota desse projeto deixa uma correlação de forças mundial desfavorável para o imperialismo e abre-se uma crise política que atiça fogo em uma situação econômica que já era explosiva.
 
Dois momentos da crise
 
O primeiro momento da crise aprofunda-se em agosto de 2008 com a quebra do banco Lehman Brothers, o que demonstrou a fragilidade do sistema bancário-financeiro norte-americano e internacional, que esteve à beira de sua bancarrota global.
 
A crise expressou-se com muita força em toda a economia e houve dois trimestres (o último de 2008 e o primeiro de 2009) com as piores quedas do PIB e da produção industrial de todos os países imperialistas em décadas (equivalentes ao primeiro impacto da crise de 1929).
 
Naquele momento, os governos dos países imperialistas e outros (como Brasil, China e Rússia) começaram a lançar os megapacotes de ajuda aos bancos e mercados financeiros, totalizando 24 trilhões de dólares (40% do PIB mundial anual). Da mesma forma como antes haviam sido grandes impulsionadores da especulação financeira, esses governos atuavam agora como “companhias de seguro” do sistema financeiro, muitos deles, inclusive, ao custo de se superendividarem, mostrando claramente o caráter atual desses Estados. Com essa política, a burguesia imperialista freou o processo de queima de capitais fictícios e especulativos que seria uma consequência natural da crise, tentando postergar, mas ao mesmo tempo aprofundando, as contradições que a tinham gerado. Era necessário queimar muito capital para poder recompor a taxa de lucro, mas o imperialismo faz o oposto (gera mais capital).
 
De modo mais conjuntural, essa política teve dois êxitos. Por um lado, evitou a quebra do sistema financeiro mundial. Por outro, barrou a dinâmica de “plano inclinado” e a de que a recessão se transformasse em depressão. Abriu-se um período de frágil recuperação, cujo pico se deu no primeiro trimestre de 2009, especialmente nos EUA, Alemanha e Japão. Definimo-lo como “frágil” porque se baseou precisamente nesses pacotes e não em um aumento sustentado do investimento burguês. A burguesia não investiu por considerar, primeiro, que a taxa de lucro ainda não tinha se recuperado de modo satisfatório e, depois, porque não viu a “estabilidade política” garantida.
 
No caso da China, uma política de incentivos fiscais e crédito fácil permitiu-lhe recuperar altas taxas de crescimento e assim atuar como uma espécie de “motor secundário” que também move seus principais provedores de matérias primas e alimentos, como Brasil, Argentina ou Peru. Por tratar-se de uma economia basicamente exportadora de produtos industriais, a continuidade da crise econômica internacional, por um lado, e as profundas contradições que está acumulando em seu interior, por outro, colocam a questão de até quando poderá continuar cumprindo esse papel. É um tema que analisamos em um artigo específico desta edição do Correio Internacional.
 
Duas crises que se retroalimentam
 
As contradições não resolvidas e agravadas começaram a se manifestar com clareza no final de 2009. Por um lado, estourou a crise fiscal (de ingressos e pagamentos do Estado) de vários países europeus, como Portugal, Irlanda e Grécia (os PIGs), ante a impossibilidade de pagar suas dívidas. Houve também uma crise do euro em sua totalidade e sua própria subsistência como “moeda europeia” ficou em risco. Em outro artigo específico, analisa-se com maior profundidade esta “crise da dívida” e a situação do euro e da União Europeia.
 
Ao mesmo tempo, a resistência dos trabalhadores e da juventude aos planos de ajuste de seus governos na Grécia, França, Espanha, Reino Unido, Itália e Portugal mostrou que a crise econômica tinha uma clara dimensão política e que um aspecto central de sua dinâmica passou a ser definido no terreno da luta de classes.
 
Essa retroalimentação, que nos EUA se manifesta, por enquanto, como uma crise “nas alturas”, na Europa tem, além disso, a luta de classes como elemento central.
 
Devido à crise e ao superendividamento, os governos imperialistas europeus devem atacar cada vez mais frontalmente e sem mediações as condições de vida e os direitos dos trabalhadores, desfrutadas durante décadas (obtidas após a Segunda Guerra Mundial), e assim descarregar sobre seus ombros o custo da crise, especialmente nos países mais frágeis.
 
Mas os trabalhadores europeus, com sua maior tradição sindical e política, resistem. No caso grego, a resistência vem há mais de dois anos, com várias greves gerais às quais se somou agora a ocupação de praças, ao estilo egípcio ou espanhol. A Grécia está na vanguarda, mas a resistência começa a estender-se por todo o continente, com a luta dos trabalhadores e da juventude francesa contra Sarkozy, em 2010; as mobilizações da “geração à rasca” portuguesa; os indignados espanhóis; a poderosa greve geral de servidores públicos e professores, e a explosão nos bairros da Inglaterra…
 
Essa luta produz desgaste e crise nos governos que aplicam os planos, sejam de direita ou de “esquerda”. E, na medida em que a luta se mantém, são os próprios regimes que começam a evidenciar crises, ao se esgotarem as mediações políticas que tentam desviá-la e freá-la. Na Grécia, o governo do social-democrata PASOK desgasta-se aceleradamente, sem que a direita (Nova Democracia) se recupere de sua derrota eleitoral de 2009. Um desgaste dos regimes que também começa a expressar-se nas mobilizações de Portugal e da Espanha. Os regimes democrático-burgueses, sólidos por muitas décadas, começam a mostrar suas fissuras.
 
Isto se torna mais evidente nos países mais frágeis aos quais, em troca da “ajuda” financeira, são impostas medidas e condições de controle similares às que os países latino-americanos sofreram nas décadas de 1980 e 1990.
 
É evidente que há diferenças: a Grécia não é igual à Alemanha, onde o proletariado mais poderoso da Europa ainda não entrou em cena a fundo. Mas o governo de Merkel também está sofrendo as consequências da crise europeia com a queda de seu prestígio político. A dinâmica mostra que teremos mais Grécias e não mais Alemanhas.
 
As burguesias dos países europeus devem aplicar os piores planos de ajuste e os mais duros ataques a seus trabalhadores e povos, não em um contexto de tranquilidade, mas de forte resistência e de crescente crise política, que os deixam em um “atoleiro”, mesmo que consigam votar esses pacotes nos parlamentos, alimentando de novo a crise econômica continental e internacional.
 
Um aprofundamento da crise nos EUA
 
Por outro lado, a frágil recuperação dos EUA mostrou suas dificuldades em se manter, e começou a transformar-se, segundo palavras do economista Nouriel Roubini, primeiro em um “crescimento anêmico”, e depois, em 2011, começou a desacelerar mais claramente, entrando em uma dinâmica cada vez mais recessiva.
 
Após sua derrota nas eleições legislativas de 2010, Obama realizou uma última jogada: a emissão de 600 bilhões de dólares para comprar títulos do Tesouro e, assim, desvalorizar o dólar para aumentar as exportações e diminuir as importações. Mas a deficitária balança comercial dos EUA não melhorou. Piorou. A política de Obama havia fracassado.
 
Nesse contexto, abre-se o debate sobre a ampliação da dívida pública norte-americana (contraída por meio dos títulos do Tesouro), que havia chegado a seu limite legal e necessitava autorização legislativa. O economista Paul Krugman (um dos ideólogos da fase anterior de Obama) vinha defendendo que o estímulo dos megapacotes tinha sido “curto” e que era necessário outro. Mas agora sua proposta estava completamente isolada.
 
Os republicanos (utilizando o Tea Party como aríete) exigiam que, para ampliar o limite da dívida, cada novo dólar emitido tivesse como contrapartida um dólar cortado no orçamento federal, mantendo a isenção de impostos para as empresas e os ricos. Obama aceitava os cortes, mas, com os olhos voltados para sua reeleição, pedia o fim de algumas isenções de impostos e que lhe dessem alguma margem orçamentária para fazer alguma concessão.
 
A lei aprovada significa que a proposta republicana triunfou em toda sua linha e isso significa uma mudança da política do imperialismo norte-americano diante da crise. Abandona-se a política anterior de Obama (a linha Krugman) de expandir sem limites a base monetária e passa-se a uma política bem mais restritiva: nos próximos dois anos, o governo federal deverá cortar despesas na ordem de 900 bilhões de dólares. Algo que certamente terá efeitos recessivos nos EUA e no mundo.
 
Os setores mais afetados serão a saúde e a educação públicas, e o auxílio aos desempregados e aos sem teto, em um ataque feroz aos setores populares. Os trabalhadores e as massas dos EUA reagirão, como o setor da educação da Califórnia e os servidores públicos de Wisconsin fizeram? Da resposta dos trabalhadores dependerá se haverá ou não um ascenso das massas e o seu ritmo. Se este ascenso ocorrer, os EUA se aproximarão da Europa no terreno da luta de classes.
 
O impacto no mundo
 
A queda de braço parlamentar entre o governo Obama e os republicanos colocou os EUA à beira do default. Isso agravou extremamente as tensões e a instabilidade do sistema financeiro internacional já bastante “sensibilizado”.
 
Passado o perigo de default, as tensões não se dissiparam: pela primeira vez na história, uma agência de classificação de risco de crédito rebaixou a categoria da dívida norte-americana, as bolsas de todo o mundo tiveram dois “dias negros” (mesmo que tenham se recuperado um pouco posteriormente, o saldo foi muito negativo), as cotações de dois dos principais bancos franceses despencaram, suspeitos de estarem em pé sobre “investimentos podres”… Clara mostra do “nervosismo” da burguesia imperialista e de sua falta de confiança, o que aumenta a possibilidade de uma recessão.
 
Aqui temos um exemplo evidente de como a crise econômica e política se alimentam entre si. Problemas econômicos estruturais, como o déficit fiscal e a trava da recuperação, provocam uma duríssima queda de braço que acaba em uma profunda crise política, com Obama extremamente debilitado e o regime político muito desgastado. Uma crise política que agrava os problemas econômicos internos e aumenta os da economia internacional.
 
Sobre a hegemonia dos EUA
 
A profunda crise econômica e política vivida pelos EUA, a derrota do projeto Bush, o crescimento econômico da China e, por enquanto, a maior resistência deste país à crise econômica são alguns dos fatores que contribuem para fortalecer a tese de que estamos assistindo ao fim do período da indiscutível hegemonia norte-americana e ao início de uma nova correlação de forças entre as potências no mundo.
 
Acreditamos que essa tese está profundamente equivocada. A hegemonia de uma determinada potência imperialista está baseada em relações materiais que lhe permitem exercer esse predomínio nos terrenos econômico, político e militar. Hoje, o capitalismo imperialista vive, em sua totalidade, uma profunda crise nos três terrenos e essa crise evidentemente afeta os EUA. Mas, no contexto dessa decadência, não surgem polos alternativos que possam disputar realmente essa hegemonia.
 
Nem Europa nem China
 
No terreno econômico, o imperialismo norte-americano continua dominando o sistema financeiro mundial (centro da atual economia). A profunda crise da “experiência do euro” mostra as grandes limitações da Europa para postular-se como “polo alternativo”.
 
No terreno da produção industrial, há uma perda relativa para a China. Mas não podemos esquecer que as empresas norte-americanas (e também as japonesas e europeias) são as donas e grandes exportadoras dessa produção. A China não cumpre um papel independente na economia mundial, mas, sim, subordinado aos EUA, devido a uma política consciente do principal imperialismo de elevar a taxa média mundial de lucro. Este papel de dependência em relação aos países imperialistas, que se aplica aos demais países emergentes, faz com que a China não possa ser uma potência imperialista alternativa aos EUA.
 
É verdade que a crise econômica gerou choques e atritos entre as potências imperialistas quanto às políticas a serem aplicadas diante da crise. É possível, inclusive, que esses choques e atritos se aprofundem. Mas essas contradições dão-se no âmbito de uma subordinação global aos EUA.
 
No terreno político-militar
 
No terreno militar, a superioridade dos EUA continua sendo inquestionável, mesmo que a derrota do projeto Bush e sua “agressividade unilateral” tenha levado o imperialismo norte-americano a mudar de tática.
 
Hoje, o peso principal é colocado na política de reação democrática e na tentativa de conseguir, via “acordos” e “diálogo”, recuperar na mesa de negociações o que foi conquistado pela luta e a resistência das massas. Este foi o objetivo central de Obama: reverter esta crise com uma política de “diálogo” e “hegemonia por consenso”, que se expressou na criação do G-20 e em um novo papel para as submetrópoles. Mas isso não significa abandonar ou excluir a ação militar, como vimos no Haiti ou no Oriente Médio (Líbia).
 
Nenhuma das outras potências questiona a hegemonia político-militar norte-americana e continuam aceitando o papel secundário que lhes foi atribuído após a Segunda Guerra Mundial. Ainda que, devido à “síndrome do Iraque”, haja uma tendência a intervenções militares conjuntas (que incluem aliados semicoloniais), como foi o caso do Haiti e da Líbia. É uma política que serve à atual situação dos EUA e que pode se repetir e se ampliar caso a situação revolucionária mundial e o ascenso de massas continue e se aprofunde.
 
A revolução árabe
 
Este ano começou com um processo impactante: a onda revolucionária no mundo árabe. Devido à sua extensão, sua profundidade e a região em que se desenvolve, consideramos tratar-se do processo atual mais importante da luta de classes em nível mundial.
 
Coerente com sua importância, dedicamos a esse tema os artigos principais das duas edições anteriores do Correio Internacional, nos quais analisamos suas raízes mais estruturais, seu caráter de classe e seu conteúdo objetivamente socialista, as profundas contradições em seu desenvolvimento e nossa proposta programática para esse processo revolucionário. Neste número, dedicamos um artigo específico à situação da Líbia, onde a luta armada está derrubando a ditadura de Kadafi após uma intensa guerra civil.
 
Queremos apresentar, de modo sintético, alguns aspectos e sua influência na situação econômica e política mundial:
 
        A revolução árabe ocorre em uma região estratégica que concentra 60% das reservas mundiais de petróleo e abastece grande parte das necessidades mundiais. Caso prolongue-se, desenvolva-se e estenda-se, afetará o preço do barril e agravará a dinâmica recessiva.
        Já tendo atingido um país chave (Egito), ameaça os dois aliados mais estratégicos do imperialismo na região: Arábia Saudita e, principalmente, Israel. O operativo de controle imperialista da região encontra-se profundamente ameaçado.
        O processo estende-se e entra com muita força na Palestina (com as mobilizações do dia da Nakba, que “furaram” as fronteiras do Estado sionista) e na Síria (onde, devido à violenta resposta do regime dos Assad e apesar dos mais de dois mil mortos e feridos, os protestos se radicalizam cada vez mais e podem tomar a forma de uma guerra civil, mais ainda após a derrota de Kadafi na Líbia).
        Como assinalamos, os processos da Tunísia e especialmente do Egito voltaram a pôr no centro da situação mundial as grandes mobilizações e revoluções de massas como fator possível de transformações históricas. A luta dos povos árabes deixa de ser vista como algo de “fanáticos islâmicos” ou de “aparatos terroristas” para ser uma referência muito atrativa para os trabalhadores e a juventude do mundo.
        Isso gerou um “efeito de emulação” com claro impacto nas lutas europeias contra os ataques dos governos, como vimos na Grécia e, com absoluta clareza, nos “indignados espanhóis”. Impactou inclusive os EUA, pelo menos no debate na vanguarda.
        Teve e tem a juventude (não só a estudantil, mas também a trabalhadora e desempregada) cumprindo um papel de vanguarda e utilizando os novos meios de comunicação social como uma ferramenta de organização para a luta. Algo que também se reflete nas lutas europeias e de outros países (por exemplo, no Chile) não só pelo “efeito de emulação”, mas também porque compartilham os mesmos problemas estruturais.
        As revoluções, principalmente o surgimento de uma nova vanguarda juvenil, sem o peso das derrotas do passado e sem um futuro no horizonte sob o capitalismo, atropelam as velhas organizações, sejam nacionalistas burguesas laicas ou islâmicas, provocam-lhes crises e assim abrem um contexto mais favorável para a superação da crise de direção revolucionária na região. Possivelmente, o ritmo com que as massas árabes fazem a experiência com essas velhas direções seja mais lento que o dessa nova vanguarda.
        O processo revolucionário árabe enfrenta uma ação contrarrevolucionária do imperialismo, de Israel e das burguesias nacionais árabes, que tentam desviar, frear e derrotar os processos nacionais e o processo revolucionário árabe como um todo. É uma política contrarrevolucionária que combina a ação militar e a repressão, e onde isso já não pode evitar a queda dos ditadores, tenta aproveitar a crise de direção revolucionária e as ilusões das massas na democracia burguesa.
 
As perspectivas
 
A combinação dos diferentes elementos que analisamos aponta a possibilidade crescente de uma nova recessão, no contexto de uma fase mais longa de declínio da economia internacional. É claro que esta perspectiva mais geral mudaria se a burguesia conseguisse uma derrota histórica dos trabalhadores, uma enorme queda de seu nível de vida, um aumento significativo da exploração e da taxa de lucro e, com isso, as condições para uma nova fase de grandes investimentos. Mas, por enquanto, não é essa a perspectiva que vemos como a mais provável.
 
O inevitável é que, sem alternativas de concessões nem de conciliação, a burguesia redobrará a ferocidade de seus ataques ao nível de vida, salários, empregos e condições de trabalho. E que, devido ao fato de não haver derrotas históricas ou profundas, os trabalhadores e os povos continuarão respondendo com lutas de resistência, como na Europa, e revoluções, como no mundo árabe.
 
A conjugação de todos esses elementos (continuidade da crise econômica internacional, aumento dos ataques da burguesia, resposta de luta dos trabalhadores, crises políticas) leva ao aprofundamento do que chamamos de “situação revolucionária mundial”. Vemos pela frente, então, um longo processo de anos de crise e confrontos, com uma crescente polarização política e social.
 
É evidente que não se trata de ter uma visão facilista. Na medida em que a crise de direção revolucionária subsista e que esta ausência impeça que as lutas das massas avancem para revoluções operárias e socialistas que derrotem o capitalismo em cada país e depois no mundo, a burguesia sobreviverá e irá encontrando saídas conjunturais. Mas essas saídas são cada vez mais precárias e frágeis e, na medida em que não consiga uma derrota histórica dos trabalhadores, acabam aprofundando a situação revolucionária. Basta ver, por exemplo, a gravidade muito maior da situação atual comparada com a crise de 2001.
 
As direções atuais são mais frágeis que as anteriores
 
Se o tema da direção das massas é uma das chaves da dinâmica da situação, analisemos o que está ocorrendo nesse campo.
 
Assinalamos que, depois da queda do aparato stalinista mundial, surgiram novos aparatos sindicais e políticos (ou os velhos foram reciclados), como os aparatos stalinistas e as burocracias sindicais nacionais, as organizações neorreformistas etc. Novas correntes burguesas também ganharam peso, como o chavismo e o fundamentalismo islâmico radicalizado. Algumas inclusive se organizaram como correntes internacionais.
 
Essas correntes são bem mais frágeis e têm muito menos peso do que tinha o stalinismo no movimento operário e de massas. Mas conseguiram atuar com relativa eficiência para frear, controlar e desviar as lutas e processos revolucionários e continuam sendo obstáculos significativos para a superação da crise de direção revolucionária.
 
Mas, na medida em que há cada vez menos margem para a conciliação de classes e para o reformismo e os processos da luta de classes se aprofundam, essas correntes mostram-se cada vez mais frágeis para contê-los, ao mesmo tempo em que, devido ao seu papel traidor nesses processos, mostram claros sintomas de crise.
 
A reorganização
 
A crise econômica e suas consequências (os duros ataques dos governos e das empresas aos trabalhadores) e as traições das burocracias sindicais aceleram a experiência das massas e aprofundam o desgaste dessas direções. Aí estão como exemplos o profundo desgaste de organizações sindicais, como a UGT e a CCOO na Espanha (que firmaram um pacto com o governo entregando inúmeros direitos dos trabalhadores) ou, em menor medida, o TUC inglês.
 
Isso liberta forças para o surgimento de polos alternativos de direção, mesmo que este processo ainda seja muito incipiente e lento. Na Espanha, temos o exemplo da Cobas e das diferentes coordenações impulsionadas por ela e na França, com todas suas limitações, Solidaries. Em países com menor ascenso, surgiram experiências ainda minoritárias, mas com verdadeiro peso, como a CSP-Conlutas no Brasil e a CCT no Paraguai. Em um processo mais atomizado, porém muito rico e estendido, devemos mencionar, no Egito, o surgimento de numerosas comissões de empresa e de novos sindicatos que substituem as estruturas sindicais do velho regime.
 
No campo popular e da juventude, vimos processos como o da “geração à rasca” de Portugal e dos indignados espanhóis. Por um lado, a juventude imprime a essas lutas suas características de explosividade e radicalização, e sua ação por fora dos aparatos tradicionais. Mas, por outro lado, suas expectativas na “democracia em geral” e a inexistência de uma estratégia de tomada do poder pela classe trabalhadora marcam limites que podem levar à sua rápida extinção (como em Portugal) ou ao risco de serem canalizadas por organizações de difuso caráter reformista, como a “Democracia Real Já”.
 
No mundo árabe, houve várias expressões de reorganização política, como a organização juvenil “6 de abril” (depois ampliada para a coordenação “25 de janeiro”) e também a coordenação de ativistas (majoritariamente jovens) que organizou a jornada da Nakba.
 
Ao mesmo tempo, assistimos a um forte desgaste do castro-chavismo (devido à combinação entre o ajuste capitalista em Cuba, o apoio a ditadores como Kadafi e Assad, e o papel de Chávez como “entregador” de dirigentes das FARC) e ao início do declínio da influência do fundamentalismo islâmico por causa de sua posição contrária à revolução árabe. Isso tem uma grande importância pelo peso que o castro-chavismo havia alcançado na América Latina e os islâmicos no mundo árabe.
 
Para concluir, é importante destacar que, por enquanto, nesse processo de reorganização incipiente desenvolve-se mais rápido o aspecto negativo (desgaste e crise das velhas organizações) que o positivo (surgimento de novas organizações e correntes).
 
A tarefa de construir a direção revolucionária
 
A queda do aparato estalinista mundial permite um maior desenvolvimento dos processos revolucionários. Ao mesmo tempo, a contradição de que ainda não foi superada na consciência a falta de uma referência estratégica para a tomada do poder e a revolução socialista se expressa no fato de que, por enquanto, os processos não geraram o surgimento de correntes centristas progressivas de massas. Ou seja, rupturas das grandes organizações que girem à esquerda, aproximando-se do programa revolucionário, sobre as quais os revolucionários possam ter uma política para ganhá-las plenamente para esse programa. Se a situação continuar se desenvolvendo, é claro que isso pode mudar no futuro, mas por enquanto não é assim.
 
Isso não significa que a realidade não apresente a uma organização revolucionária nacional e internacional a possibilidade de crescer, ganhar peso e dar um salto. Pelo contrário, é necessário aproveitar as numerosas oportunidades e desafios que essa realidade coloca no terreno da luta e da reorganização sindical e política.
 
É necessário intervir nesses processos com uma estratégia clara, a tomada do poder pelos trabalhadores para iniciar a construção do socialismo, com táticas adequadas a cada realidade concreta e consequência e decisão para aplicá-las. Em uma situação assim, um polo revolucionário, ainda que seja pequeno, pode ter um papel decisivo nos processos em que está inserido se tiver uma linha correta.
 
Nesse sentido, estamos vivendo um momento histórico em que a LIT-QI e suas organizações nacionais podem dar saltos de qualidade e construir sólidos partidos de vanguarda em diversos países. É, ao mesmo tempo, uma grande responsabilidade e um grande desafio.
 
A história já provou que sem partido revolucionário os processos revolucionários podem avançar até certo ponto, mas inevitavelmente irão retroceder. Hoje, quando a possibilidade e a existência de revoluções estão de novo presentes, essa conclusão continua mais válida que nunca.
Fonte:http://www.litci.org/

Relatório aponta que cerca de 4,5 milhões de pessoas não têm acesso à água potável

 

 


Por Natasha Pitts -Jornalista da Adital


Cerca de 4,5 milhões de pessoas não têm acesso à água potável mesmo este bem sendo abundante na região por conta das chuvas e da quantidade de rios e lagos que alimentam os ecossistemas. É o que aponta o relatório realizado pelo Programa Estado da Nação (PEN) que se baseia em informações sobre a abundância de água na América Central e em contraponto à dificuldade de se ter acesso ao mineral potável. O trabalho foi apresentado ontem (22), Dia Internacional da Água.
Em 2000, 86,7% da população da América Central tinha acesso à água potável. Em 2008, este número passou para 91,6%. É na zona rural onde a população mais sofre com a escassez de água. Em El Salvador, Honduras e Nicarágua as diferenças de acesso entre as zonas rurais e urbanas apresentam um grande abismo.
A situação se configura assim pela concentração da população em algumas regiões, pela pouca quantidade de chuva e a falta de infraestrutura para o armazenamento, pelo aproveitamento ineficiente e pelos abusos e desperdícios de água.
Além destes problemas, o relatório aponta que a degradação da água se dá pela contaminação gerada pelos detritos domésticos, pelo uso exagerado de pesticidas e fertilizantes e em virtude da contaminação das zonas de recarga dos aquíferos devido à falta de planejamento urbano.
O desmatamento também é um fator que contribui negativamente. A limpeza de áreas verdes para atividades agrícolas, tráfico de madeiras ou geração de energia estão ajudando a construir um futuro com escassez de água. A América Central tem taxa de perda de bosques superior à taxa da América Latina e do mundo. Esta perda de bosques faz que os níveis de escoamento aumentem e gerem erosão, causando a perda de toneladas de solo cultivável.
"Uma dificuldade adicional é a intensificação das atividades produtivas. A América Central desestimulou a produção de grãos básicos e apoiou o cultivo de produtos de exportação como frutas, hortaliças, cana de açúcar e plantas ornamentais. Paralelo ao seu impacto sobre o emprego, o agronegócio tornou-se um dos principais utilizadores de água. O turismo também tem pressionado o consumo”, esclarece o relatório
A estes problemas ainda devem ser somados os efeitos das mudanças climáticas. A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), calcula que a demanda por água possa crescer até 300% no ano 2050.
Saneamento básico
Apesar dos problemas relacionados à água, mais pessoas estão tendo acesso a ela. O mesmo não aconteceu com os serviços de tratamento e saneamento da água e manejo dos recursos líquidos. Mais de 12 milhões de pessoas não têm acesso a serviço de saneamento básico. Segundo dados da Cepal, em 2008, as cifras da população com acesso a este serviço eram de 52% na Nicarágua, 69% no Panamá, 71% em Honduras e mais de 80% na Guatemala. Já El Salvador, Belize e Costa Rica apresentavam cifra acima de 95%.
Para contornar estes problemas, o relatório do PEN aponta para planejamento e governança adequados. Somente com a aplicação destas medidas é que a região vai poder atender o crescimento da população, de atividades e novas modalidades de trabalho e os padrões culturais relacionados à utilização da água.
Mais informações em: http://www.estadonacion.or.cr/

Da utopia à revolta, da indignação à revolução

por Miguel Urbano Rodrigues 
 
Telelixo. Este início do século XXI será recordado como uma das épocas mais trágicas e belas da História da Humanidade.
Mas as actuais gerações, quando comentam os efeitos da crise mundial que hoje atinge a quase totalidade dos povos e meditam sobre a onda de barbárie que varre o planeta, são empurradas para conclusões pessimistas. O que captam do tempo histórico em movimento é sobretudo o lado mais sombrio.
O homem realizou nas últimas décadas conquistas prodigiosas, inimagináveis em vida dos nossos avós. Já viajou até à Lua, lança sondas a planetas distantes milhões de quilómetros da Terra, sonha com a fundação de cidades terrestres no Espaço, rompe a cada dia as fronteiras do saber, prolongou a esperança de vida.
Foi entretanto breve o tempo das ilusões quando em l945 se calaram os canhões após o esmagamento da Alemanha nazi. A esperança de que a Humanidade iria entrar numa era de paz com as guerras banidas para sempre era utópica. Desde então morreram mais de 50 milhões de pessoas em guerras criminosas e em fomes cíclicas.
A desigualdade social aumentou, aprofundou-se o fosso entre os países desenvolvidos e os mais pobres. Meio milhar de multibilionários acumulou fortunas colossais, algumas (como as de Carlos Slim e Bill Gates) superiores a metade do PIB português. Gigantescas transnacionais impõem a sua vontade aos governos de Estados da África, da Ásia e da América Latina.
A violência assume hoje carácter endémico em amplas regiões do planeta. Um imperialismo colectivo hegemonizado pelos EUA promove agressões para se apossar dos recursos naturais de povos do antigo Terceiro Mundo. Isso aconteceu no Iraque, na Líbia, no Afeganistão.
Neste ultima país os EUA cometem crimes que trazem à memória os das SS hitlerianas.
A guerra afegã está perdida. No corpo de oficiais instalou-se uma mentalidade de matizes fascizantes. Mas o Presidente Obama promulga a lei de autorização da Segurança Nacional que permite a prisão de qualquer cidadão suspeito de contactos com "terroristas".
E a escalada da violência prossegue. O governo neofascista de Israel tenta arrastar o seu grande aliado para uma agressão ao Irão. Obama hesita. Mas apenas por estar consciente de que o envolvimento numa nova guerra na Ásia antes de Novembro poderia prejudicar decisivamente a sua reeleição.
Uma grande parte da humanidade, desinformada, não consegue desmontar os mecanismos da mentira.
PORTUGAL
A crise, nascida nos EUA, é uma crise do capitalismo.
Longe de estar superada, agrava-se porque é estrutural e não cíclica.
Alastrou pelo mundo e, como era inevitável, contaminou a União Europeia. As receitas para a enfrentar são aqui diferentes das utilizadas nos Estados Unidos porque o dólar é ainda quase a moeda universal e o Banco Central Europeu não tem a possibilidade de emitir sem controlo biliões de euros numa estratégia financeira de combate à crise. Mas aqui, como do outro lado do Atlântico, o objectivo do poder foi acudir aos responsáveis e evitar a falência da grande banca e de gigantescas transnacionais. A factura dos crimes da Finança é cobrada às vítimas, isto é, aos trabalhadores.
País periférico, subdesenvolvido, semi colonizado, Portugal está há muito desgovernado por forças políticas que se submetem docilmente às medidas impostas pelo imperialismo e as aplaudem.
As sanguessugas do capital, actuando em nome da Comissão Europeia e do FMI, proclamam que o povo trabalhador deve sacrificar-se, apertar o cinto, cumprir todas as exigências da chamada troika para recuperar a confiança dos "mercados".
Um sistema mediático perverso e corrupto entra no jogo. Emite críticas irrelevantes ao funcionamento da engrenagem, simulando urna independência inexistente.
O coro dos epígonos, perante o avolumar da indignação dos trabalhadores, teme que ela assuma proporções torrenciais, e repete que felizmente somos um povo de "brandos costumes", diferente do grego, um povo que compreende a necessidade da "austeridade", consciente de que somente dela pode nascer a superação da crise.
Incutir um sentimento de fatalismo nas massas é objetivo permanente no massacre mediático. Arrogantes, os sacerdotes do capital proclamam que não há alternativa à sua política.
Que fazer?
É pelos caminhos da luta que ela pode ser encontrada.
É necessário combater com firmeza a alienação que atinge uma grande parcela da população. Combater a ideia falsa de que vivemos uma situação democrática, porque o regime parlamentar foi legitimado pelo voto popular é uma exigência histórica, tal como a desmontagem das campanhas que condenam as greves como anti-patrióticas e as manifestações de protesto como iniciativas românticas.
Ajudar milhões de portugueses a compreender como foi possível que 37 anos após uma Revolução tão bela e profunda como a de Abril de 74 o país, de tombo em tombo, voltasse a ser dominado pela classe que o oprimia na época do fascismo tornou-se uma tarefa revolucionária.
Como foi possível o refluxo? A relação de forças que permitiu as grandes conquistas revolucionárias durante os governos do general Vasco Gonçalves não se alterou de um dia para o outro.
A base social do Partido Socialista não deve ser confundida com a do PSD e do CDS. Mas ajudar a compreender que a direcção do PS, colectivamente, tem actuado conscientemente ao serviço da direita é muito importante. Na quase glorificação de Sócrates no Congresso daquele partido o PS projectou bem a sua imagem. O secretário-geral tinha conduzido o país à beira do abismo com a sua política neoliberal de vassalagem ao capital, mas foi ali aclamado como herói e salvador.
Renovaram-lhe a confiança e ele afundou mais o país. Depois ocorreu o esperado. O funcionamento dos mecanismos da ditadura da burguesia de fachada democrática colocou a aliança PSD-CDS de novo ao governo.
Uma parcela ponderável do povo acreditou que votava por uma mudança. Na realidade, limitou-se a accionar o rodízio da alternância no governo de partidos que competem na tarefa de servirem os interesses do capital do qual são instrumentos submissos.
Hoje, cabe perguntar: como pode ter chegado a Primeiro-ministro uma criatura como Passos Coelho? As suas palavras e actos suscitam diariamente torrentes de comentários e interpretações dos analistas de serviço nos media. O homem é um ser de uma indigência mental tão transparente que até intelectuais da direita como Pacheco Pereira reconhecem o óbvio.
O povo acompanha, angustiado, as cenas da farsa dramática. Há dois anos que a sua resposta à política que está a destruir o país não pára de crescer. Mas é ainda muito insuficiente. As grandes manifestações de protesto e as greves (a geral e as sectoriais) somente podem abalar o sistema se a luta adquirir um carácter permanente e diversificado, nas fábricas, nos portos, nos transportes, nas escolas, na Administração, em múltiplos locais de trabalho, nas ruas.
E evidente que as condições subjectivas não são em Portugal as da Grécia cujos trabalhadores, caluniados, se batem hoje pela Humanidade.
Que fazer? – insisto.
0 esforço do PCP na luta contra o imobilismo e a alienação como contribuição indispensável para o reforço da consciência de classe e o nível ideológico da classe trabalhadora assume hoje – repito – carácter de tarefa revolucionária.
A burguesia tudo faz para estimular o pessimismo. O governo e o patronato sabem que a convicção de que não há alternativa para a "austeridade" os favorece. Proclamam que a luta de massas somente agravaria a crise.
A atitude positiva deve ser a oposta, a optimista, a que fortalece o espírito de luta. Não se combate o desemprego, a pobreza, a supressão de conquistas sociais, cedendo ao medo.
A luta do povo português é inseparável da luta de outros povos que mundo afora que são, como o nosso, vítimas de políticas similares do imperialismo ou ainda mais cruéis e desumanas.
É útil desmascarar a monstruosidade das agressões a países da Ásia e da África e lembrar que nas condições mais adversas os povos do Iraque, do Afeganistão, da Palestina, da Líbia, entre outros, resistem e se batem contra a barbárie imperialista.
É preciso lembrar que a luta dos povos é planetária. A nossa globalização não é a deles. Enquanto a maré desce em algumas zonas da Terra, sobe noutras.
É preciso lembrar que o povo cubano, hostilizado pela mais poderosa potência do mundo, alvo de uma guerra não declarada, defende há meio século a sua revolução com coragem espartana.
É preciso lembrar que na América Latina os povos da Venezuela bolivariana, da Bolívia e do Equador apontam ao Continente o caminho da luta contra o capitalismo predador com o apoio maciço dos trabalhadores e da massa dos excluídos.
É útil lembrar que foram as grandes revoluções que contribuíram decisivamente para o progresso da Humanidade.
A burguesia francesa apunhalou em 1792 a Revolução por ela concebida e dirigida. Uma lenda negra foi forjada para a satanizar e lhe colar a imagem de um tempo de horrores e violência. Mas, transcorridos mais de dois séculos, é impossível negar que a Revolução Francesa ficou a assinalar uma viragem maravilhosa na caminhada da Humanidade para o futuro.
É preciso, é útil lembrar que o mesmo ocorreu com a Revolução Russa de Outubro de 1917. O imperialismo festejou como vitoria memorável a reimplantação do capitalismo na pátria de Lenine. Mas não há calúnia nem falsificação da Historia que possa apagar a realidade: as grandes conquistas sociais dos trabalhadores europeus no século XX surgiram como herança indirecta da Revolução Russa, a mais progressista da Historia. Foi o medo do socialismo e do comunismo que forçou a burguesia na Europa a conformar-se com conquistas que, como a jornada de 8 horas, as férias pagas, o 13º salário, tudo faz hoje, desaparecida a URSS, para suprimir.
Em Portugal é preciso e possível recusar o pessimismo, que leva a baixar os braços, à inércia, é indispensável reassumir a esperança que empurra para o combate e a vitória.
Em 1383 e em 1640, quando o país estava de rastos e tudo parecia afundar-se, o povo português desafiou o impossível aparente e venceu.
É preciso recordar que, após quase meio século de fascismo, o povo português foi sujeito de uma grande revolução que na Europa Ocidental realizou conquistas sociais mais profundas do que qualquer outra desde a Comuna de Paris.
Vivemos um tempo de pesadelo. No fluxo e refluxo da Historia, os opressores do povo estão novamente encastelados no poder. Mas é útil lembrar que as sementes de Abril sobreviveram à contra-revolução. E elas voltarão a germinar nos campos e nas cidades, lançadas pelos trabalhadores em marcha pelas grandes alamedas em lutas vitoriosas.
Transformar no quotidiano em realidade a palavra de ordem "a luta continua" é, mais do que um dever, uma exigência da História.
15/Março/2012/Vila Nova de Gaia
O original encontra-se em http://www.odiario.info/?p=2415 Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

terça-feira, 20 de março de 2012

Caso Pinheirinho: “o episódio afrontou a legislação em bloco”

O desembargador José Osório de Azevedo Júnior analisa o episódio do bairro Pinheirinho sob o viés jurídico e defende que casos como esse não podem ser cumpridos de forma direta, específica. “São ordens inexequíveis. Elas são juridicamente impossíveis”

Por: Graziela Wolfart e Thamiris Magalhães

O desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo e professor de Direito Civil, José Osório de Azevedo Júnior, considera que a ação que dizimou o bairro do Pinheirinho, em São José dos Campos (estado de São Paulo) “foi uma ordem que não podia ser cumprida porque era inexequível. Era uma ordem insana. E os fatos comprovaram isso”. Na entrevista que aceitou conceder por telefone para a IHU On-Line, ele traz dados didáticos e informativos sobre o caso à luz do Direito. Para ele, “o sistema jurídico brasileiro foi afrontado de uma maneira grosseira e em muitos pontos” no caso Pinheirinho.

Para José Osório, a aplicação do princípio da função social da propriedade ainda não foi muito bem absorvida pelo judiciário como um todo. “Nos casos mais chocantes não se pode valorizar uma propriedade, um direito meramente patrimonial, em detrimento dos valores superiores. Isso está muito claro, é só estudar mais um pouco Direito. É elementar na ciência do direito que as normas legais, as leis, não são da mesma categoria. Essas normas legais se ajustam, se arrumam numa forma piramidal. As leis inferiores estão na base e no alto estão as leis constitucionais, as leis superiores. É evidente que no choque entre as duas, tem-se que preponderar aquelas que estão em cima. Na hora da aplicação da lei o juiz e o governador devem levar isso em conta”, defende.

Sobre o governo Dilma, José Osório considera como um grande instrumento o programa “Minha casa, Minha vida”, que merece elogio em relação à questão da posse. No entanto, ele critica o programa em relação à questão financeira.

José Osório de Azevedo Júnior é mestre em Direito Civil pela PUC-SP, onde é professor de Direito Civil desde 1973. Foi vice-presidente e presidente do 1.º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo e desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, aposentando-se em fevereiro de 2002. É ex-conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo, e ex-membro da sua Comissão de Ética e Disciplina.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Por que o senhor afirma  que uma decisão judicial só deve ser obrigatoriamente cumprida para os casos corriqueiros. Que casos corriqueiros seriam esses no Brasil?

José Osório de Azevedo Jr. –
São casos corriqueiros esses do dia a dia, em que um direito individual foi afrontado e a pretensão do prejudicado foi reconhecida pela justiça. Esses casos diferem dos gravíssimos, que são aqueles com enormes consequências sociais e humanas, como no Pinheirinho, cuja execução afetou a vida de mais de cinco mil pessoas indefesas, impotentes de qualquer reação. É evidente que um caso desses não pode ter o mesmo tratamento de uma pessoa que teve um objeto furtado, que teve o terreno da sua casa invadido e que quer recuperá-lo.

IHU On-Line – Qual é a dificuldade em se fazer cumprir a justiça para esses casos mais gravíssimos?

José Osório de Azevedo Jr. –
Isso é simples, basta não cumprir. Esses casos não podem ser cumpridos de forma direta, específica, “limpando” o terreno. São ordens inexequíveis. Elas são juridicamente impossíveis. Nesses casos converte normalmente em perdas e danos. O comum, no Direito, sempre que um ato se torna juridicamente impossível, é ser convertido em perdas e danos. Porque não é possível obrigar uma pessoa a fazer certos atos que ofendem a natureza humana. E não é só o particular que invade terrenos. O poder público, com frequência, também invade terrenos para construir coisas. Acha que o processo de desapropriação vai demorar muito, então constrói um pedaço da estrada ou um edifício público num imóvel particular, sem desapropriar. O que acontece? O particular pode pedir a reintegração de posse? Não pode, pois não vai destruir a estrada para pegar de volta aquele imóvel. Há mais de 60 anos que o direito brasileiro descobriu isso. Então, o governo, o poder público vai indenizar, na chamada desapropriação indireta. Não é comum reintegrações de posse não poderem ser executadas de forma direta. Nesse caso do Pinheirinho, aparece como um dos problemas mais difíceis a questão de quem vai pagar essa indenização. Por enquanto, o que nos interessa, é isto: essa decisão não pode ser cumprida de maneira específica.

IHU On-Line – Então, nesses casos, o recomendado seria uma espécie de flexibilização no cumprimento da lei?

José Osório de Azevedo Jr. –
Muito bem, é isso mesmo.

IHU On-Line – Por que o direito brasileiro não é monolítico?

José Osório de Azevedo Jr. –
Não é monolítico por dois motivos: primeiro porque o direito brasileiro não é só isso que foi exibido nesse lamentabilíssimo episódio. Já existem decisões que mostram que é inviável a recuperação física da posse da favela. E também não é monolítico porque, como você disse muito bem, o direito é flexível, principalmente nas regras abertas, mais amplas como, por exemplo, quando se defende a dignidade da pessoa humana, a função social da propriedade e a boa fé. São regras amplas e nelas o processo de criação do direito, o processo legislativo, não se esgota com o ato do legislador. A criação do direito será completada no ato de aplicação do juiz. Daí a importância do judiciário e da força que o juiz tem hoje para contribuir para este sinal de criação do direito.

IHU On-Line – Então podemos dizer que no episódio do Pinheirinho não houve muita flexibilização?

José Osório de Azevedo Jr. –
Não teve nenhuma. Foi uma ordem que não podia ser cumprida porque era inexequível. Era uma ordem insana. E os fatos comprovaram isso.

IHU On-Line – De que maneira o episódio do Pinheirinho afrontou os princípios da legislação, dos julgados e da ciência do direito?

José Osório de Azevedo Jr. –
O episódio afrontou a legislação em bloco. Não foi só um artigo aqui, outro ali. O sistema jurídico brasileiro foi afrontado de uma maneira grosseira e em muitos pontos. O primeiro deles, a Constituição Federal, a maior de todas as leis, foi afrontada. E dou outros exemplos: foi afrontado também o Código de Processo Civil, que tem um artigo que diz que os atos processuais só podem ser praticados em dias úteis. No entanto, tudo ocorreu num domingo, às 6 horas da manhã. Esse mesmo artigo remete para a Constituição Federal, em um artigo que diz que a casa é o asilo inviolável do indivíduo e que ninguém pode entrar lá a não ser que o morador aceite ou então se está havendo uma prática de crime e, só nesses atos, é que o juiz pode autorizar a entrada na casa de moradia de uma pessoa, de uma família. Outros dispositivos da Constituição também foram violados, a começar pelo primeiro deles, que é o artigo primeiro, inciso 3, que diz que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República. E mais: a propriedade deve cumprir a sua função social. Depois, são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra das pessoas (“Ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante”). Além disso, foram violadas as leis de proteção aos animais. E aqui peço licença para ler um trecho de uma reportagem publicada na Folha de S. Paulo, de 12-02-2012, intitulada “Adeus, Pinheirinho”. A matéria conta a história de uma veterinária que foi até lá com algumas companheiras e estavam horrorizadas tentando salvar centenas de gatos e cachorros famintos, abandonados, estressados. Diz a matéria: “18 dias depois daquela guerra, os gatos e cachorros estão esfomeados, assustados, desidratados, mas ainda esperam por seus donos em cima dos escombros das casas em que viviam. O grupo de voluntárias ainda andou por todo o terreno e encontrou dezenas de animais mortos. Os donos saíram ‘corridos’, muitos deixaram seus animais trancados em casa para evitar que se perdessem. Quando as retroescavadeiras entraram, derrubando tudo, três dias depois, soterraram os bichos. Um dos animais resgatados foi um cãozinho recém-nascido, localizado enquanto tentava mamar na mãe morta. Ele não resistiu”. Quer mais alguma afronta?

A aplicação do princípio da função social da propriedade ainda não foi muito bem absorvida pelo judiciário como um todo. Nos casos mais chocantes não se pode valorizar uma propriedade, um direito meramente patrimonial, em detrimento dos valores superiores. Isso está muito claro; é só estudar mais um pouco Direito. É elementar nessa ciência que as normas legais, as leis, não são da mesma categoria. Essas normas legais se ajustam, se arrumam numa forma piramidal. As leis inferiores estão na base e no alto estão as leis constitucionais, as leis superiores. É evidente que, no choque entre as duas, precisam preponderar as que estão em cima. Na hora da aplicação da lei o juiz e o governador devem levar isso em conta.

IHU On-Line – No seu entendimento, qual foi o grande erro do Judiciário e do Executivo no caso Pinheirinho?

José Osório de Azevedo Jr. –
O grande erro foi não perceber essa enorme alteração da situação de fato. Passaram-se os anos e o que era um imóvel rural passou a ser um bairro. Então, aquilo que podia ter uma motivação jurídica digna, que era a recuperação de posse imediata, deixou de ter. Tanto o tribunal como o governador não perceberam isso, ou seja, que aquela ordem, que poderia ser, em tese, digna de proteção legal naquele momento, já deixou de ser. Faltou sensibilidade para os dois chefes de poder, porque o presidente do Tribunal de São Paulo avalizou o cumprimento dessa ordem e mandou seu assessor, um juiz de direito, acompanhá-la. O governador não teve coragem suficiente para descumprir a ordem, o que ele poderia ter feito, justificando que também está submetido à Constituição.

IHU On-Line – O que o caso do Pinheirinho deixou de lição para a sociedade civil, aos estudantes de direito e profissionais da área?

José Osório de Azevedo Jr. –
Ele mostra, em primeiro lugar, a insensibilidade das instituições da maior importância. O cidadão e a sociedade paulista e brasileira ficaram estarrecidos com o que aconteceu lá. Então, escancarou essa fragilidade das instituições que não souberam resolver o impasse em nenhum momento: nem antes, complicou ainda mais durante, e evidentemente que não tem arranjo para se resolver no futuro. Mostra também a necessidade de se estudar mais direito, com maior senso de realidade e de distinguir quais são os valores principais que entram em choque. O positivo foi a repercussão do caso, graças em grande parte, à imprensa, que lançou o caso ao conhecimento público.

IHU On-Line – Qual sua avaliação da política habitacional do governo Dilma?

José Osório de Azevedo Jr. –
Vi no jornal uma declaração da presidente da República em que ela disse que o episódio do Pinheirinho era uma barbaridade. E foi mesmo. De todos os poderes, o que se saiu menos mal, nesse caso, foi o federal. Os poderes municipal e estadual é que foram, a rigor, os causadores de tudo o que aconteceu. É claro que o normal é a expropriação da área. O ideal seria não deixar acontecer, mas sabemos que esse fenômeno não é só nosso, é mundial, principalmente nos países em desenvolvimento. Então, o governo federal não se saiu mal. Sobrou um pouco para ele, porque um caso desses atinge todo mundo. Se estivesse bem organizado, esse imóvel já estaria desapropriado. Não vejo o governo federal com uma conta direta no caso, mesmo a indireta é difícil atribuir, só uma culpa em sentido muito amplo.
Parece-me que o governo Dilma é uma sequência, nessa linha, do governo anterior. O grande instrumento foi o programa “Minha casa, Minha vida” e a atual presidente está dando sequência a isso. Esse programa tem coisas muito interessantes. E merece elogio na parte que é mais ligada à minha área de estudo, que é a posse. Dá elementos para o poder público municipal entrar no circuito e fazer o projeto de regularização fundiária, de cadastrar os possuidores, os ocupantes dessas habitações. E daí sai um cadastro, o que parece algo de enorme importância, porque o possuidor passa a ter um título administrativo, um título de posse. Com isso ele tem garantia, tem um valor econômico, se ele quiser pode até vender. Começa-se a ficar um pouco mais legalizada a situação da posse.

Entre outras coisas, houve um erro, a meu ver, da lei, que diz que, com o registro da posse no registro de imóveis e com o passar do tempo (mais de cinco anos), o possuidor adquire a propriedade. Isso é um erro, porque a propriedade no usocapião é adquirida só com o passar do tempo. Não é a sentença do juiz e muito menos uma declaração do registro de imóveis que vai dar a propriedade.
O que achei ruim no programa é que o setor financeiro conseguiu enxertar um artigo dizendo que os juros podem ser capitalizados mensalmente. Isso é terrível, é o que transforma as dívidas em uma “bola de neve” e quando vê o devedor está surpreendido porque deve muito mais do que imagina. Aqui se vê a sucção de dinheiro da classe pobre para a classe rica. Nessa parte financeira o programa merece críticas severas. Entendemos que o governo quis seduzir o setor financeiro para investir na moradia. Para a classe média que pode pagar, tudo bem. Mas na linha da camada realmente pobre, isso não tem nenhum sentido.
Fonte: http://www.ihuonline.unisinos.br/