terça-feira, 7 de setembro de 2010

Guerra de dossiês

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Acredite, se quiser. Está tudo aqui, nos arquivos digitais daquilo que, um dia, foi uma revista.


E as bruxarias andam soltas

Numa guerra suja, a "base aliada" se
engalfinha com grampos e dossiês

Felipe Patury e Marcelo Carneiro


Ninguém esperava que fosse tão cedo, faltando ainda sete meses para o pleito presidencial, mas a guerra suja das campanhas eleitorais já deu o ar de sua graça. Na semana passada, no rastro da devassa policial no escritório da Lunus, empresa da governadora Roseana Sarney e de seu marido, Jorge Murad, Brasília foi tomada por aquela parafernália que traz à superfície o que há de mais subterrâneo: espionagem, grampos telefônicos e dossiês. No Congresso, o PFL protocolou uma denúncia contra o deputado tucano Márcio Fortes, do Rio de Janeiro. Acusam-no de contratar arapongas para espionar a governadora do Maranhão. O PFL também fez barulho com a notícia de que, sob o comando de José Serra, o Ministério da Saúde pagou uma bolada a uma empresa para detectar grampos telefônicos em suas dependências. Suspeita-se que, na verdade, a empresa poderia estar fazendo espionagem para Serra. Por fim, o PFL ameaça juntar-se ao PT para criar a CPI da arapongagem, com o objetivo de azucrinar o governo, investigando todos os casos de escuta clandestina ocorridos na gestão de Fernando Henrique.


Sérgio Lima/Folha Imagem

O deputado Márcio Fortes, acusado de arapongagem: denúncia no Congresso


Os pefelistas têm sido acusados de levantar a voz contra uma investigação legítima e legal, que começou em abril de 1997, bem antes da campanha presidencial. Afinal, não foi um tucano, nem um araponga, quem colocou 1,3 milhão de reais no escritório da Lunus. As versões mentirosas sobre o dinheiro também não foram criadas por adversários (veja reportagem). Não foram obra de tucano ou araponga as suspeitas que ligam Jorge Murad às fraudes contra a velha Sudam. Há que se reconhecer, no entanto, que a arapongagem sempre esteve solta, como prova o célebre caso do grampo no BNDES, até hoje não esclarecido, cujo suspeito número 1 ainda é Temílson Antônio Barreto de Rezende, o Telmo, um ex-araponga oficial. Para desencanto de quem esperava que essas práticas estivessem sepultadas, elas continuam em pleno vigor. E, por incrível que pareça, os bruxos da espionagem aparecem quase sempre voando nos céus do que até pouco tempo atrás se chamava de "base aliada do governo" – ou seja, tucanos e pefelistas.

O governador Anthony Garotinho conta que, em 18 de fevereiro, recebeu uma pessoa no Palácio das Laranjeiras, a residência oficial do governador do Rio. Garotinho se recusa a revelar a identidade do interlocutor, limitando-se a dizer que era "um político fluminense", mas relata o conteúdo da conversa. Seu visitante ofereceu-lhe um cardápio de denúncias contra a governadora do Maranhão. Era um calhamaço, com mais de 10 centímetros de altura e uma capa transparente sobre uma folha branca, em que se lia "Dossiê Roseana Sarney". Garotinho manuseou o material por uma hora e meia. Estava dividido em três partes. Uma falava da vida pessoal da governadora. Outra contava supostos casos de irregularidades no governo do Maranhão. A última versava sobre a família Sarney. "Aquilo foi coisa de profissionais", afirma o governador. "Existem detalhes como o valor de uma conta de restaurante que ela pagou, com quem estava e o cartão de crédito que usou", completa.


Ed Ferreira/AE

Bornhausen, presidente do PFL: batendo na tecla das investigações espúrias


Garotinho diz que não foi possível precisar o período em que o dossiê foi produzido porque constavam fotos e documentos antigos e atuais. No dossiê, lembra o governador, havia ainda transcrições de grampos telefônicos. Isso levou à suspeita no PFL de que a devassa da Polícia Federal no escritório da Lunus só foi realizada no dia 1º de março porque um grampo telefônico teria permitido aos policiais saber que, naquele dia, haveria mais de 1 milhão de reais em dinheiro vivo nos cofres da empresa, razão pela qual o diretor da PF, Agílio Monteiro, foi convidado a prestar explicações no Congresso nesta semana. Garotinho diz que não se importou em ficar com o material ou tirar cópia, mas quis saber qual era o interesse de seu interlocutor na divulgação do material. O "político fluminense" teria dito: "O mesmo seu, abalar a candidatura da Roseana". Garotinho, então, quis saber a mando de quem o "político fluminense" lhe oferecia o dossiê. "Do Márcio Fortes", ouviu. Encerrada a conversa, Garotinho ligou para José Sarney e contou o que vira. Sarney disse que já sabia de tudo. E que aquilo era obra "desse Márcio Fortes".

De fato, Sarney já sabia da história. Há dois meses, o ex-presidente procurou Fernando Henrique Cardoso no Palácio da Alvorada. Reclamou de duas coisas. Disse que arapongas da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) estavam vasculhando a vida de sua filha. E que espiões contratados pelo deputado Márcio Fortes estavam fazendo o mesmo. Márcio Fortes não é um tucano qualquer. É secretário-geral do PSDB e membro do coração da campanha de Serra. A Sarney, Fernando Henrique esclareceu que jamais dera essa ordem para o general Alberto Cardoso, chefe da Abin, mas ficou de apurar o assunto. E ainda pediu ao general que ligasse para Sarney. Ocorreu o seguinte diálogo:

– Não existe nada disso, senador – garantiu o general ao telefone, referindo-se a sua turma da Abin.

– O Márcio Fortes – insistiu Sarney – contratou gente ligada à comunidade de informações no Rio. Estão fazendo dossiês contra Roseana.

– Ah, isso pode ser... Vou investigar – respondeu o general Cardoso.

O ex-presidente José Sarney nunca apresentou nomes, datas ou qualquer outro dado para reforçar suas acusações. O governador Garotinho recusa-se a dar o nome do interlocutor que levou o dossiê para ele examinar. O deputado Márcio Fortes nega qualquer envolvimento com o assunto. "Não conheço nem nunca tive qualquer contato com as pessoas apontadas como autoras de grampos", afirma Fortes. Mesmo com essas brechas todas, os ânimos se acirraram ainda mais na semana passada, quando se descobriu a história de uma empresa contratada pelo Ministério da Saúde para combater grampos telefônicos. Ela se chama Fence Consultoria Empresarial e pertence a um coronel da reserva, Enio Fontenelle. Até o ano passado, sua empresa tinha um contrato de 28.000 reais fixos por mês com o Ministério da Saúde para fazer varredura em linhas telefônicas e leitura eletromagnética de ambientes. Sua função era proteger o ministro José Serra e sua equipe de eventuais grampos. O contrato foi renegociado no fim do ano passado, com dispensa de licitação e em bases realmente extraordinárias, que deram novo alento à saúde financeira da empresa de Fontenelle. Com o novo contrato, a Fence pode ganhar até 150.000 reais por mês.

Fotos Moreira Mariz, Felipe Araujo/Folha Imagem, Sebastião Moreira/AE, Joedson Alves/AE

1. O deputado Moroni Torgan: aviso a Tasso sobre grampo telefônico
2. O governador Tasso Jereissati: sem acreditar que o tucano Márcio Fortes se envolveu em bruxarias
3. Paulinho, da Força Sindical: também avisou a Tasso sobre dossiês
4. O ex-presidente José Sarney: outro que alertou Tasso sobre arapongagens

A Fence tem sido procurada por vários órgãos públicos. Atualmente, mantém negócios com seis deles, num sinal de que seus serviços são muito populares na capital federal. Entre eles há órgãos que, antes do rompimento com o governo, eram comandados pelo PFL, como o Ministério do Esporte eTurismo e a Caixa Econômica Federal. A Fence também é a preferida dos tribunais. Hoje, tem contrato com o Supremo Tribunal Federal e com o Superior Tribunal de Justiça. A diferença gritante está nos preços. No fim do ano passado, renovou seu contrato com o Ministério da Saúde e abocanhou uma bolada de 1,8 milhão de reais. Dá 150.000 reais por mês. Nenhum outro contrato com órgão público é assim tão elevado. O maior deles foi com o Superior Tribunal de Justiça, mas não chegava a 16.000 reais por mês – ou quase um décimo do valor do contrato com o Ministério da Saúde.

O coronel Fontenelle justifica o aumento de sua carga de trabalho com os embates que o Ministério da Saúde teve nos casos de quebra de patentes de remédios para a Aids, do lançamento dos genéricos e da luta contra o cigarro. Como nada disso aconteceu neste ano, o coronel admite: "O volume de trabalho cresce de acordo com os riscos. Ser candidato a presidente da República é, sem dúvida, motivo de riscos maiores". Para ganhar os 150.000 reais expressos no contrato, a Fence tem de realizar até 600 incursões em busca de grampos no Ministério. Se no mesmo mês checar a linha do ministro 600 vezes, leva os 150.000. De 1º de janeiro até 28 de fevereiro, Fontenelle já faturou no Ministério da Saúde 211.000 reais. Isso significa que realizou nada menos que 840 varreduras em apenas 59 dias. Feita a conta, chega-se a catorze varreduras por dia.


Dida Sampaio/AE

O ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira: até agora, é o alvo principal dos pefelistas


O jogo sujo é arma conhecida nas campanhas eleitorais, mas costuma aparecer perto da reta final, e não com tanta antecedência. Na semana passada, não havia um ou dois dossiês circulando em certas rodas de políticos e empresários, mas vários – e sempre na tal "base aliada". Há quinze dias, o governador do Ceará, o tucano Tasso Jereissati, recebeu um telefonema de Sarney, alertando-o para a existência de um dossiê sobre seu governo. Dias depois, Jereissati recebeu outra ligação. Um emissário do deputado Moroni Torgan, do PFL, seu desafeto na política local, confirmou ao governador que havia um dossiê a seu respeito. Nessa versão, as acusações tratavam de operações bancárias consideradas estranhas feitas pelo Banco do Nordeste, cujo presidente foi indicado por Jereissati. Torgan nega ter falado em dossiê e diz ter feito um alerta sobre a existência de supostos grampos para investigar o governador do Ceará.

Em outubro do ano passado, o governador já recebera um telefonema do presidente da Força Sindical, Paulo Pereira da Silva, o Paulinho. Ele contou que ouvira relato sobre um dossiê a respeito de operações descritas como irregulares das empresas da família da mulher de Jereissati, o grupo Edson Queiroz, o maior do Estado. Na última semana, Paulinho confirmou a VEJA que obteve a informação e deu ciência dela a Tasso Jereissati. Em pelo menos um dos três telefonemas, Jereissati foi comunicado de que a mão por trás do dossiê – olha ele aí de novo – era a de Márcio Fortes. "Os dossiês não passam de afirmações levianas organizadas por desocupados", afirma o governador. A respeito de Márcio Fortes, Jereissati declara: "Não posso acreditar, em hipótese alguma, que o secretário-geral do PSDB, impulsionador da campanha a presidente do nosso candidato, que é o Serra, possa estar fazendo qualquer coisa contra mim".

Quando se fala da existência de um dossiê, as pessoas podem ser levadas a acreditar que se trata de um compêndio encadernado e volumoso. Isso não é uma regra. Alguns dossiês podem até ser volumosos, mas entre os papéis em circulação nos últimos dias há até "dossiês" de uma folha só. Numa dessas folhas soltas há o relato de que um governador do PFL teria gasto 150.000 dólares numa viagem de dez dias a Paris. A viagem de fato existiu, mas o governador nega que tenha gasto tal quantia – e VEJA optou por não identificá-lo porque não há prova do esbanjamento. Outra característica ligada aos dossiês diz respeito à sua consistência. Por maior que seja o documento, em geral não apresenta prova alguma de irregularidade. Não se está falando de um aprofundado estudo a respeito de um personagem com o objetivo de listar a ocorrência de fraudes comprovadas associadas ao seu nome. Seu único propósito é difamar e levantar uma nuvem de suspeitas sobre o político em torno de quem se escreve. A idéia é sugerir que o alvo das investigações não passa de um vigarista, quando, na verdade, a vigarice confirmada é a do autor do dossiê.


Selmy Yassuda

Telmo, o ex-araponga oficial, suspeito no caso do grampo do BNDES


Esse tipo de dossiê costuma aparecer em períodos de eleição, mas muitos deles foram produzidos com bastante antecedência e ressurgem em fase de campanha. Boa parte dos papelórios surge como contribuição a um candidato, feita por um empresário amigo ou aliado político. É o caso de um dossiê que versa sobre alguns assessores e amigos de José Serra, principalmente o economista Andrea Calabi, ex-presidente do BNDES. Foi preparado por encomenda de um dos maiores bancos de investimentos do Brasil e realizado por uma empresa americana. O "documento", confeccionado no início de 2000, reapareceu agora, nas mãos de um político do PFL. Os dossiês têm em comum o fato de revelar episódios incríveis, denúncias monumentais, cobranças de propinas astronômicas. A grande maioria, no entanto, trabalha com fatos impossíveis de ser comprovados. Existe um dossiê, oferecido a um grande empresário brasileiro, que transcreve telefonemas trocados entre um ex-ministro do governo Fernando Henrique e um deputado federal. No telefonema, o ex-ministro oferece dinheiro ao deputado em troca da aprovação de um projeto de interesse do governo federal. A transcrição do diálogo impressiona, mas não há fita para comprovar sua veracidade.

Na semana passada, VEJA encomendou ao Instituto Vox Populi uma pesquisa para verificar a impressão dos eleitores sobre a campanha após os fatos dos últimos dias. Foram entrevistados 500 eleitores, por telefone, entre a quarta e a quinta-feira, em quinze capitais. Os resultados mostram que o eleitorado está descontente com os candidatos. Para 75% das pessoas ouvidas, os políticos estão dispostos a fazer qualquer coisa para ganhar o próximo pleito. Para 78% dos eleitores, as campanhas são financiadas com o dinheiro do caixa dois das empresas, e 95% declaram que o interesse dos empresários que financiam políticos é obter influência no governo e exigir vantagens em troca de favores. O Brasil está mal-humorado com o comportamento de seus políticos. E a guerra dos dossiês só contribui para piorar esse mau humor.
Fonte: Revista Veja via Cloaca News

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