segunda-feira, 17 de maio de 2010

O assistencialismo e o Bolsa Família (Parte 3)


Por Fabio Veras Soares
O programa Bolsa Família tem recebido críticas à esquerda e à direita. A principal acusação é que ele seria um programa assistencialista. Na verdade o programa Bolsa Família como qualquer programa focalizado nos mais pobres é um programa de assistência social. No dicionário Aurélio o termo “assistência social” é definido como “serviço gratuito, de natureza diversa, prestado aos membros da comunidade social, atendendo as necessidades daqueles que não dispõem de recursos suficientes”. Assistencialismo, que por sinal não consta no dicionário, é na verdade uma deformação na prestação da “assistência social”, envolvendo troca de favores e critérios pouco claros na forma de seleção dos beneficiários. Portanto, um programa assistencialista é um programa de “assistência social” utilizado como mecanismo de troca de favores.
Como a crítica ao Bolsa Família não se baseia apenas em numa crítica à forma de gestão, mas sim à própria natureza do programa, pode-se concluir que o que se questiona é a “oportunidade” de se ter um esse tipo de programa no Brasil. Nessa(s) visão(ões) crítica(s) o programa seria ruim por: 1) acomodar o pobre que não buscaria mais trabalho e ascender socialmente e 2) desperdiçar dinheiro público com assistência quando o que importa é gerar emprego e renda, única maneira de tirar a população da pobreza. Dar dinheiro aos mais pobres é uma idéia tão ruim assim?
O que se esquece é que o Estado – desde sua origem – tributa e redistribui renda entre os diversos segmentos da sociedade. Ou seja, além de prover bens públicos, a função do Estado é tirar de e dar renda a diferentes segmentos da sociedade. Se essa redistribuição vai ajudar os mais pobres, ou os mais ricos, ou vai ser neutra é uma questão que depende de fatores políticos, sociais e econômicos de um determinado período histórico.
Na Colônia e no Império medidas redistributivas se davam tanto mediante programas assistenciais (ou o amparo social como se dizia à época) como, por exemplo, a concessão de pensões a órfãos e a viúvas honestas, a ajuda à manutenção das casas de misericórdia, assim como por meio de concessões de mercês e monopólios para a exploração de certas atividades econômicas. O amparo social era assistencialista porque baseado na troca de favores e não como uma política pública – ou um direito – cujo objetivo seria o de proteger os que mais necessitam.
A concessão de mercês e monopólios, por sua vez, visava a manutenção do status quo e de privilégios em mãos de poucos, não visando nem o bem comum nem o progresso econômico. Formas contemporâneas desse tipo de transferência ainda persistem quando, por exemplo, os fundos públicos são chamados a cobrir “buracos” de fundos privados que, em geral, se destinam aos grupos menos necessitados da sociedade – uma fração diminuta da população, mas que abocanha a maior parte da renda nacional e, em alguns casos, tem maior facilidade de acesso aos recursos públicos. Fenômeno que muitas vezes não é explicado somente pelo retorno dos atributos produtivos desses segmentos da sociedade.
Seria o Bolsa Família uma versão moderna das arcaicas esmolas reais/imperiais? Poderia o Bolsa Família poderia ter um efeito-preguiça generalizado entre os mais pobres de modo a prevenir não só a ascensão social das famílias beneficiárias como também atrapalhar o desenvolvimento econômico do país, ao desviar recursos de investimentos prioritários?
O chamado “efeito-preguiça” carece totalmente de base real. Em primeiro lugar, o benefício é muito baixo para ter impactos significativos sobre a oferta de trabalho. É difícil imaginar que com uma beneficio mensal de no máximo R$ 95,00 (o que equivale na melhor das hipóteses a uma renda per capita de no R$ 23,70, isto é, a renda de um domicílio com um adulto e 3 crianças) o(s) membro(s) adulto(s) daquele domicílio se retiraria(m) do mercado de trabalho ou abandonariam suas atividades de subsistência.
Além disso, as evidências empíricas baseadas em avaliações experimentais de programas similares, como o Progresa/Oportunidades no México, mostram que o impacto é nulo sobre a oferta de trabalho dos beneficiários (ver recente estudo de Emmanuel Skoufias e Vicenzo di Maro: http://ideas.repec.org/p/wbk/wbrwps/3973.html).
Os dados da PNAD 2004, por sua vez, indicam que os indivíduos que moram em domicílios onde existe um beneficiário do Bolsa Família não tem uma taxa de participação no mercado de trabalho menor do que seus contrapartes em domicílios sem beneficiários, mas com renda similar. Ao contrário, a taxa de participação dos “beneficiários” tende a ser maior do que a taxa de participação dos “não-beneficiários”.
Esse resultado vale tanto para chefes e chefas de domicílio como para seus respectivos cônjuges. Por exemplo, entre os 10% mais pobres, a taxa de participação no mercado de trabalho dos moradores adultos (18 a 64 anos) é de 73% para domicílios com beneficiários e 67% para domicílios sem beneficiários. Essa maior participação se mantém para homens chefes (93% e 87%), homens cônjuges (84% e 81%), mulheres cônjuges (60% e 47%) e é, praticamente, igual para mulheres chefes (64,5% e 64,4%). Esse resultado é observado também para extratos um pouco menos pobres como o segundo, o terceiro e o quarto décimos da distribuição.
O temor de um impacto negativo sobre o crescimento também nos parece equivocado. Se for verdade que é necessário crescer para melhorar o bem-estar de todos, também é verdade que o impacto do crescimento sobre a pobreza é mediado pela distribuição inicial dos recursos de uma sociedade. Em sociedades extremamente desiguais como a brasileira, as taxas de crescimento necessárias para reduzir a pobreza são bem mais elevadas do que em sociedades com menos desigualdade.
Além disso, também é verdade que pobreza e desigualdade de renda diminuem o potencial de crescimento de uma economia. Deste modo, políticas que reduzam a desigualdade não só afetam diretamente a pobreza como aumentam o potencial do crescimento e magnificam o impacto do mesmo sobre a redução da pobreza. Por esse motivo, políticas redistributivas são sempre muito bem vindas para aqueles que acreditam que a pobreza deve ser reduzida o mais rapidamente possível. Nesse sentido, vale a pena ver como o Bolsa Família tem se saído como um programa redistributivo. Os resultados de diversos estudos com períodos e metodologias diferentes apontam para um grande impacto do Bolsa Família. No texto “Cash Transfer Programmes in Brazil: Impacts on Poverty and Inequality”(http://www.undp-povertycentre.org/newsletters/WorkingPaper21.pdf) se mostra que entre os componentes que contribuíram para a redução da desigualdade – observada entre 1995 e 2004, o Bolsa Família esta em terceiro lugar – perdendo para a renda do trabalho e para pensões e aposentadorias vinculadas ao salário mínimo-, sendo responsável por 13% da redução do índice de Gini no período, mas corresponde a apenas 0,5% da renda total das famílias brasileiras. Estes resultados mostram que mesmo uma pequena transferência pode ter um grande impacto sobre a desigualdade quando bem focalizada.
Dados os resultados acima o que surpreende e que se tenha levado tanto tempo para descobrir uma maneira efetiva de reduzir a desigualdade e diminuir a pobreza: transferir renda (dinheiro) aos mais pobres! E esse dinheiro não é simples assistencialismo, como rotineiramente se lê de maneira pejorativa nos jornais. Trata-se, na verdade, de um programa de assistência social, cuja origem pode ser rastreada de maneira embriônica as experiências em nível local com o renda mínima de Campinas e o Bolsa Escola no Distrito Federal e que incorporou milhões de cidadãos brasileiros que estavam completamente desamparados da rede de proteção social existente no país até então, particularmente, as crianças em domicílios pobres. Uma política de proteção social é um elemento fundamental em qualquer democracia que pretenda estender a todos os benefícios do desenvolvimento econômico. Ainda há muito que fazer para aperfeiçoar o programa, mas transferir renda é uma função do Estado e o fato de estar distribuindo a favor dos pobres é uma ótima noticia, também, para o crescimento econômico.
Fabio Veras Soares é economista da Coordenação do Ipea no Centro Internacional de Pobreza da ONU
Fonte: http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2006/08/12/285240593.asp

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