quarta-feira, 3 de março de 2010

Estratégia e tática

Por Istvän Mészáros

O movimento socialista não terá a menor chance de sucesso contra o capital caso se limite a levantar apenas demandas parciais. Tais demandas têm sempre que provar a sua viabilidade no interior dos limites e determinações reguladoras preestabelecidas do sistema do capital. As partes só fazem sentido se puderem ser relacionadas ao todo ao qual pertencem objetivamente. Desse modo, é apenas nos termos de referências globais da alternativa hegemônica socialista à dominação do capital que a validade dos objetivos parciais estrategicamente escolhidos pode ser adequadamente julgada.

E o critério de avaliação deve ser a capacidade desses objetivos parciais se converterem (ou não) em realizações cumulativas e duradouras no empreendimento hegemônico de transformação radical. Portanto, não surpreendentemente, o slogan reformista bernsteiniano, que proclamou que "a finalidade é nada, o movimento é tudo" - fetichizando os objetivos parciais mais limitados do "movimento" e rejeitando, ao mesmo tempo, o objetivo socialista global - só poderia conduzir o movimento socialista ao beco sem saída da capitulação.
Uma das questões mais importantes de qualquer estratégia socialista é a contabilidade usada para orientar e avaliar os passos e medidas particulares que devem ser adotados no curso da transição da ordem estabelecida para uma outra radicalmente diferente. Pois, se até mesmo a fase histórica de ascendência do capital pode criar algumas condições materiais favoráveis que apontam na direção de "uma vida social reformulada", como argumentou Marx, as vantagens materiais potenciais em questão se tornam totalmente ameaçadas quando a ascendência histórica do sistema terminou e o capital só pode continuar a se impor à sociedade ao custo de minar suas próprias realizações anteriores.

A incorporação estrutural da produção de desperdício na dinâmica expansionista da produção atual do capital é um exemplo muito bom de como as expectativas otimistas justificáveis de Marx desandaram sob a pressão do aprofundamento das contradições do sistema do capital. Por isso, é vital que adotemos uma estrutura de contabilidade muito diferente daquela a que nos acostumamos, ou seja, uma nova estrutura de contabilidade que possa avaliar com segurança tanto a direção geral da estratégia emancipatória socialista como seus objetivos mediadores particulares.
Em princípio, "contabilidade" - frequentemente reduzida a seu aspecto mais óbvio de "guarda-livros" - e "administração" poderiam ser considerados momentos essenciais (alguns poderiam dizer absolutos) de todos os modos presentes e futuros de reprodução sociometabólica. Isto é verdade no sentido de que nenhum sistema reprodutivo social pode funcionar de um modo sustentável sem ativar seus recursos materiais e humanos e sem controlar a sua distribuição e o seu desenvolvimento conforme algum princípio de "economia".
Porém, apesar da automitificação "dos princípios racionais de alocação" e dos "valores instrumentais", não existe aqui a questão da "neutralidade". As ideias resultantes de avaliações "sem influência de valores" ou "neutras com relação a valores" das questões em jogo, e as ações baseadas em conclusões assim obtidas, pertencem às fantasias apologéticas da ordem estabelecida. Em muitas ocasiões, vimos que as anunciadas "conclusões racionais" são, desde o início, normalmente, aceitas, acritica e circularmente, por aqueles que se identificam com o ponto de vista do capital, de modo a permitir-lhes chegar à "prova conclusiva", ideologicamente desejada, da superioridade do seu sistema.
Contudo, assim que examinamos um pouco mais de perto o supostamente neutro "livro-caixa" do capital, do qual se diz ser baseado em "pura racionalidade instrumental", fica claro que tal contabilidade é contabilidade social fortemente carregada de valores. Como Marx corretamente observou, "o capitalista como tal só possui poder como personificação do capital. É por isso que na contabilidade com dupla entrada ele figura constantemente duas vezes, isto é, como DEVEDOR ao seu próprio CAPITAL".1

Caracteristicamente, Max Weber designou um papel fundamental à "descoberta da contabilidade de partida dobrada" na sua tendenciosa representação da ordem capitalista como paradigma de racionalidade. Ele pôde assim ignorar a primazia das relações materiais de poder, desconsiderando completamente a real natureza da subjetividade específica do sistema do capital - a personificação do capital - e sua contabilidade de partida dobrada, determinada pelo sistema e nada racional.
As mesmas considerações se aplicam à administração, que é inconcebível sem a moldura social - que, sob a dominação do capital, é uma necessária moldura sócio-hierárquica profundamente injusta e estruturalmente predeterminada e garantida - pela qual os princípios globais de regulação societária são ordenados e então implementados ou impostos. Até mesmo os "princípios puramente formais" do regulamento de trânsito, que Hayek falaciosamente quis generalizar e usar, com típica ânsia ideológica, na defesa acrítica do capital e da sua formação estatal, se apóiam em uma rede social hierárquica de representação e imposição. Isso sem mencionar as "decisões administrativas racionais" de construir (ou não) as próprias estradas nas quais o tráfico pode ser então "racionalmente regulado".

O modo pelo qual se casam os argumentos sobre a "insuperável complexidade da sociedade industrial moderna" e a também insuperável "administração racional" do sistema do capital - incluir as alegações relativas à "contabilidade racionalmente eficaz" e universalmente benéfica do capital - explicita claramente a intenção apologética dos mercadores da complexidade e fabricantes do mito da racionalidade capitalista "valorativamente neutra".
Naturalmente, a questão da administração racional é importante na teoria socialista, já que sua realização prática é vital para o projeto socialista. Tal questão é inseparável da necessidade de se superar a hierarquia estrutural herdada do sistema do capital - sem que se imponha aos indivíduos sociais um tipo novo de hierárquia sob a predominãncia das personificações pós-capitalistas do capital.

Assim, o desafio fundamental, sob este aspecto, refere-se à necessidade de descartar o comando separado sobre o trabalho: um sistema de comando alienado profundamente embutido na esfera da produção, que também deve ser acompanhado por uma estrutura de comando separada na área de administração. Não pode haver administração socialista - que mereça ser caracterizado como um sistema verdadeiramente racional de administração - enquanto as premissas práticas de representação e execução de regras forem definidas pelas demandas viciadas do comando separado sobre o trabalho e associadas a qualquer forma particular de extração forçada de trabalho excedente.

Além disso, muitas das regras, desarrazoada e conflitantemente promulgadas e impostas com tanto desperdício, são dispensáveis se a necesidade pela regulamentação emergir diretamente dos indivíduos envolvidos. Isto não pode contrastar mais agudamente com a experiência histórica do século XX, na qual as regras para os sistemas de comando pós-capitalistas impuseram continuamente o imperativo de tempo do capital a um corpo social recalcitrante - a absoluta maioria do povo trabalhador. Ou seja, as personificações pós-capitalistas do capital só conseguiram exercer o controle alienado do capital pós-capitalista da estração do trabalho excedente porque estavam em plena harmonia com os imperativos alienantes do sistema.
A realização prática dos pincípios da contabilidade socialista é um componente necessário e integrante da ordem socialista originalmente divisada. Só pela realização prática de tais princípios pode ser assegurada a base material sem a qual não é possível a regulamentação racional contínua dos intercâmbios produtivos e distributivos dos indivíduos sociais. Em que pesem os mitos da eficácia racional e da economia ideal do capital, o sistema do capital nunca foi - nem jamais poderia ser - verdadeiramente econômico no uso dos recursos materiais e humanos. O que criou a aparência enganosa da economia racional insuperável foi a capacidade do sistema maximizar a extração de trabalho excedente, pois o capital, em seu impulso para expandir e acumular, funcionou como a bomba de sucção mais poderosa da história com a finalidade de extrair implacavelmente o trabalho excedente e a mais-valia do trabalho vivo.
Mas esta característica, apesar de sua importância no curso do desenvolvimento histórico, não deve ser confundida com economia real, que depende do uso das riquesas sociais criadas pelos produtores. A economia do sistema do capital se assemelha à indústria britânica de água que - de modo absolutamente inacreditável - luta contra severa excassez durante todo o verão ameno de um país que se benficia de grande abundância de chuvas. O mistério é resolvido pelo simples fato de que até um terço da água extraída pelo sistema de bombeamento britânico é irresponsavelmente desperdiçada pelos vazamentos da própria rede de distribuição. E além de tudo isso os administardores da estração privatizada de água, obscenamente bem pagos, argumentam, de modo verdadeiramente capitalista, que é "muito mais econômico" deixar que os canos desperdicem toda aquela água do que reparar ou renovar a própria rede de distribuição defeituosa: uma política seguida, dizem eles, , "estritamente no interesse dos consumidores". De forma semelhante, o poderoso sistema de bombeamento do capital como um todo ocultou, ao longo da história, seu desperdício de imensos recursos sob os resultados espetaculares da expansão desimpedida do capital. A "hora da verdade" só chega quando a necessidade de expansão encontra obstáculos significativos, como os que experimentamos em nossa época. O fato de que, em tais circunstâncias, as dificuldades da expansão lucrativa do capital assumam a forma de excassez especulativa e movimentos aventureiros do capital, negando da forma mais cruel a satisfação das necessidades elementares de incontáveis milhões de pessoas, apenas sublinha que o capital é, nas palavras de Marx, a "contradição viva".
Nota:
1 MECW, vol. 34, p.457.
[MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Tradução de Paulo César Castanheira e Sérgio Lesa. Editora da Unicamp: Boitempo editorial, 2002, p. 943-946]

Fonte: http://www.socialismo.org.br/portal/filosofia/155-artigo/1389-estrategia-e-tatica

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