domingo, 1 de novembro de 2009

Nova geografia do Trabalho Escravo brasileiro: Mudança ou Revelação?



Por Xavier Plassat
A emergência da cana nos registros do trabalho escravo brasileiro por muitos aspectos tem caráter de revelação de uma situação latente até então velada pela falta de fiscalização específica. Pela característica do empreendimento canavieiro, sempre realizado em escala de imensas plantações, cada caso fiscalizado envolve um contingente de trabalhadores não raro 10 vezes mais elevado que nas demais atividades. Daí as profundas mudanças observadas na geografia recente do trabalho escravo no Brasil. Se a cana-de-açúcar predomina pelo número de trabalhadores envolvidos ou resgatados e se, com ela, ganha destaque a região Centro-Oeste, para onde o canavial vem avançando, isso deixa de ser verdade quando se trata do número de casos identificados. Sob este aspecto, no período 2003-2008 bem como nos últimos meses, continuaram predominando a pecuária e, junto a ela, o desmatamento que muitas vezes abre-lhe o caminho, seguidos pelas “outras lavouras” (soja, algodão, tomate) e pelo carvão vegetal. Com isso a Amazônia, povo e natureza, continuou sofrendo.

2008: o segundo maior número de trabalhadores escravos libertados
O número de pessoas libertadas alcançou em 2008 seu segundo maior número histórico desde a criação do Grupo Móvel: 5.266, logo atrás do ano anterior (5.968). O crescimento do setor sucroalcooleiro e do agronegócio de grãos nos cerrados centrais, em regiões de nova fronteira agrícola, explica boa parte do crescimento numérico observado: metade dos libertados de 2008 como de 2007 foram encontrados em número reduzido de fazendas de cana-de-açúcar: 18 em 2008 (7 em 2007).







Canaviais na frente
Em proporção do total dos casos identificados (280 em 2008, 265 em 2007), o número de ocorrências no setor da cana fica bem inferior ao número encontrado na pecuária e nas atividades a ela vinculadas como o desmatamento: 51% dos casos em 2008 (64% em 2007) contra 7% para a cana (3% em 2007); como também fica atrás do número de casos encontrados nas “outras lavouras” (13% dos casos de 2008) e nas carvoarias (18%). Pelo tipo de empreendimento, o canavial concentra números consideravelmente maiores de trabalhadores no mesmo espaço produtivo. Logo a imposição de condições degradantes de trabalho afeta nele contingentes expressivos de mão-de-obra, enquanto nos demais setores (onde o trabalho escravo é geralmente encontrado em serviços ocasionais empreitados a terceiros tais como desmatamento, roço de pasto, aplicação de veneno, “catação” de raízes, colheita. Somente na cana, a média de trabalhadores por caso flagrado está em 150 trabalhadores em 2008 (437 em 2007) contra 14 nas demais atividades (20 em 2007).

Em todo o Brasil
Em função disso, as áreas geográficas de concentração já antiga ou de expansão recente da cana-de-açúcar aumentaram dramaticamente sua participação no total de libertados em flagrantes de trabalho escravo nos últimos dois anos. Basta constatar que a região Norte, que sempre liderou esses números no passado, está em 2008 no terceiro lugar pelo número de libertados (19,0%), após o Nordeste (28,4%) e o Centro-Oeste (32,0%). Em 2007 o Centro-Oeste já havia assumido essa liderança questionável (40,3% dos libertados) seguido pelo Norte (34,1%) e pelo Nordeste (12,4%). No detalhamento por estado, o ranking é bastante esclarecedor: Goiás acessa ao 1° lugar (867 libertados em 6 casos), seguido por Pará (811 libertados em 66 casos fiscalizados, de um total de 106 denunciados), Alagoas (656 em 3 casos) e Mato Grosso (581 em 31 casos). Seguem: Paraná (391 libertados), Pernambuco (309), Mato Grosso do Sul (236) e Minas Gerais (229). Pelo número de casos encontrados, porém, o Norte continua líder incontestado entre as regiões, com cerca da metade (46,8%) das ocorrências de trabalho escravo, contra “apenas” 18,9% no Centro-Oeste ou 17,9% no Nordeste, e 7,9% no Sul e 8,6% no Sudeste. Território mais difícil de acesso para os fiscais, a Amazônia Legal concentrou, em 2008, 68% dos registros de trabalho escravo, 48% dos trabalhadores nele envolvidos e 32% dos resgatados.

Descobrimento
O surgimento de novos estados nos registros nacionais de trabalho escravo merece destaque. Deve ser interpretado dentro do contexto de “descobrimento” em que ainda estamos quanto à realidade atual do trabalho escravo no Brasil – cujas modalidades legais vão desde as condições degradantes até o aprisionamento puro e simples – e também em função da intensificação, pelo Grupo Móvel de Fiscalização e por algumas Superintendências Regionais do Trabalho e Emprego, de ações específicas de fiscalização orientadas para setores e regiões tradicionalmente isentas desse tipo de inspeção. Em 2008, um ano recorde em termos de operações de fiscalização, Sul e Sudeste contribuem cada um com 10% do total de libertados, com destaque para Paraná (391 resgatados), Minas Gerais (229), São Paulo (180) e Santa Catarina (132). Em 2008, quase a metade das fiscalizações com libertação efetiva foram assumidas pelas Superintendências Regionais do Trabalho e Emprego.

Degradação, precariedade, superexploração
Das condições precárias do labor cotidiano de muitos, às características próprias do trabalho escravo, existe um leque contínuo de situações intermediárias. No Brasil, além das situações de trabalho forçado (por dívida, por violência, por isolamento), o conceito legal de trabalho escravo abrange o trabalho em condições degradantes ou exaustivas: aquelas condições que ferem tanto a dignidade, quanto a liberdade. Uma infinidade de situações foge da nossa apreensão estatística. Da parcela das ocorrências que conseguimos identificar, uma parte menor ainda é fiscalizada, merecendo eventualmente o atributo legal de trabalho escravo. Para os demais casos documentados, a CPT usa a categoria de “trabalho super-explorado”. Entre os 79 casos de super-exploração documentados em 2008 (em 2007: 122), envolvendo 3.078 pessoas (em 2007: 1.583), as proporções por ramo de atividade são parecidas às do trabalho escravo: 53% na pecuária, 9% na lavoura, 6% na cana, 4% no carvão. 80% dos casos informados estão entre Pará e Tocantins. Um dado chama atenção nas duas séries: de 1 e 3% dos trabalhadores assim explorados são crianças ou adolescentes.
*Coordenação da Campanha nacional da CPT contra o Trabalho Escravo

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