domingo, 1 de novembro de 2009

Conflitos sociais no Campo: Um Histórico (1850-1960)

Por Ariovaldo Umbelino Oliveira

A imprensa brasileira tem registrado as evidências e as marcas da violência presentes nos conflitos sociais no campo brasileiro. Notí­cias sobre assassinatos de posseiros, bóias-frias, líderes sindicais, agentes pastorais, padres e advogados têm sido comuns entre nós. Talvez pelo fato de terem se tornado quase diárias, ninguém mais toma sequer conhecimento delas. Com ou sem indiferença geral, a verdade é que muitos brasileiros perderam a vida na luta por um pedaço de terra no território do latifúndio.
A história da violência no campo, como já salientamos, não é recente: é talvez um traço da história dos vencidos no Brasil. Contratar jagunços pistoleiros para matar não é um expediente dos grileiros e latifundiários de nossos tempos. A história está repleta de muitos ou­tros exemplos. Em geral estes exemplos foram, em muitos casos, ten­tativas dos vencidos em romper com a injustiça reinante no paìs.

AS LUTAS NA ESCRAVIDÃO
Nos tempos da escravidão os quilombos e os quilombolas luta­ram pela libertação:

"Entre as várias formas que os negros tinham para lutar contra o sistema de opressão, uma das mais significativas foi a formação de quilombos. Os
quilombos eram lugares de resistência negra. As pessoas que moravam nos quilombos se chamavam quilombolas. Os quilombos eram um siste­ma comunitário de vida na floresta para onde iam os negros que conse­guiam fugir da escravidão. Às vezes eram cinco, seis casas apenas. Ou­tras vezes chegavam a formar verdadeiras cidades. Estes quilombos eram sempre perseguidos pelos exércitos dos fazendeiros. Quando podiam, destruíam e matavam os negros e os recapturados eram levados de volta para os engenhos, onde eram duramente castigados e marcados." (Co­missão, 1987.)

Entre os quilombos, território negro livre no seio do latifúndio branco europeu, Palmares foi o grande exemplo de luta, resistência e destrui­ção. Lá reinaram Zambi, Ganga Zumba e Zumbi, mas o jagunço/pisto­leiro, capitão-do-mato, Domingos Jorge Velho (bandeirante de então) e seus capangas a mando do latifúndio destruíram o espaço/reduto da liberdade negra:

"O maior dos quilombos foi o de Palmares, em Alagoas. Este foi o que mais tempo resistiu aos ataques dos fazendeiros. Essa resistência que durou cem anos deve muito a seu grande líder Zumbi e à sua capacidade de organização. O número de habitantes neste quilombo chegou a vinte mil. Era uma verdadeira cidade onde os negros viviam numa comunidade de fato. Aí se fazia a experiência de fraternidade verdadeira. Era o lugar onde os negros se sentiam iguais de verdade. O quilombo dos Pai mares tinha sua base na organização social e política voltada para se defender dos exércitos dos fazendeiros e para garantir a posse coletiva da proprie­dade. Os quilombos representavam a única possibilidade, fora a morte, para fugir da escravidão e a tentativa de estabelecer uma comunidade negra, autônoma, livre, no meio da floresta. O quilombo dos Pai mares foi destruído por um grande caçador de índios e negros chamado Domingos Jorge Velho e seus soldados. Este capitão-do-mato assassinou Zumbi e muitos outros negros e índios, além de recapturar outros para vendê-Ios e enriquecer-se com isto.

Mesmo com a destruição de Pai mares e com a morte de Zumbi, os negros continuaram a fugir das senzalas e a se agrupar nas florestas, lutando pela sobrevivência e pela liberdade." (Comissão, 1987.)

AS LUTAS DE CANUDOS E CONTESTADO
o fim da escravidão no século passado não foi suficiente para remover as injustiças sociais, e o nordeste latifundiário viu nascer no
sertão a luta sangrenta de Canudos. Camponeses e Exército lutaram violentamente por mais de um ano: "em 1896-1897, a Guerra de Canudos, nos sertões da Bahia, que durou cerca de um ano, também envolvera metade do Exército e milhares de camponeses e tivera uns cinco mil mortos entre estes, impondo severas derrotas às forças militares." (Marfins, 1981.)
Além de Canudos, no final do século, o início dos anos dez mar­cou, com a Guerra do Contestado, talvez, o maior confronto armado entre camponeses e o Exército no Brasil. De novo a violência esteve presente:

"A maior guerra popular da história contemporânea do Brasil foi a Guerra do Contestado, uma guerra camponesa no sul do país, nas regiões do Paraná e Santa Catarina, de 1912 a 1916. Abrangeu 20 mil rebeldes, en­volveu metade dos efetivos do Exército brasileiro em 1914, mais uma tro­pa de mil"vaqueanos", combatentes irregulares. Deixou um saldo de pelo menos três mil mortos." (Marfins, 1981.)

AS LUTAS DOS COLONOS NA FAZENDA DE CAFÉ
Não eram apenas os camponeses nordestinos ou sulistas os en­volvidos com a luta pela liberdade, pois as greves dos colonos nas fazendas de café foram quase sempre reprimidas pelos capangas ar­mados. Elas também constituíram-se no instrumento de luta e resis­tência dos colonos migrantes explorados:

"Em 1913, o jornal em língua italiana Fanfulla havia registrado várias dú­zias de greves. Entre 1913 e 1930, o Patronato Agrícola (uma agência estatal fundada em 1911 para mediar nos conflitos entre fazendeiros e trabalhadores), bem como a imprensa dos trabalhadores, citam mais de cem greves nas fazendas de café. Embora a maioria dessas greves se limitasse a uma única fazenda, houve um caso em 1911, quando cerca de mil trabalhadores de meia dúzia de fazendas da área de Bragança entra­ram em greve por vinte dias, e como resultado conseguiram um ligeiro aumento no pagamento. No ano seguinte, trabalhadores de mais de uma dúzia de fazendas na área de Ribeirão Preto entraram em greve e tam­bém conseguiram um pequeno aumento salarial. A maior greve do perío­do ocorreu na mesma área em 1913, mas, embora mobilizasse entre dez mil e quinze mil trabalhadores, terminou em derrota totaL" (Stolcke, 1986.)

Em geral estes movimentos eram provocados pela deterioração das relações estabelecidas no colonato. Entretanto os fazendeiros de café sempre reagiram, utilizando-se da repressão policial:


"As greves geralmente ocorriam por questões tais como o preço baixo pago na colheita, não-pagamento dos salários, tentativa de redução do pagamento, castigos e multas pesadas arbitrários ou excessivos, ou limi­tações do direito de plantio. de alimentos. Nessa ocasião, à parte um au­mento no pagamento na colheita, os trabalhadores grevistas estavam exi­gindo também a suspensão de uma proibição sobre o plantio intercalado e o fim de certas irregularidades que os privavam de parte de seus salários. Mas os fazendeiros se organizaram para resistir à expansão do movimen­to grevista, possivelmente detonado pela safra pobre, e, com o respaldo da polícia, conseguiram romper a greve ameaçando os trabalhadores com expulsão imediata e negando o fornecimento de alimentos." (Stolcke, 1986.)

AS LUTAS CAMPONESAS EM MEADOS DO SÉCULO XX
Palmares, Canudos, Contestado, greves nos cafezais paulistas, muitos têm sido os exemplos de luta na história dos trabalhadores e dos rebeldes. Foi, pois, nesse processo combativo que os trabalhado­res do campo foram forjando os movimentos sociais de luta pela terra e pelo estabelecimento de relações de trabalho condizentes com a dignidade humana.
O século XX tem sido rico em exemplos de luta pela terra e dois processos têm atuado no sentido de soldar o movimento dos campo­neses no Brasil. De um lado a tentativa de resgate da condição de camponês autônomo frente à expropriação, representada pelos posseiros e sua luta contra os fazendeiros grileiros. De outro, o movimen­to originado na luta dos camponeses parceiros ou moradores contra a expropriação completa no seio do latifúndio, que os transformava em trabalhadores assalariados.
Estes dois processos gerais de luta no campo vão praticamente comandar o pipocar de conflitos durante todo este século. É a luta sangrenta dos camponeses contra o pagamento da renda da terra.
Exemplos desses processos foram a Revolta de Trombas e For­moso em Goiás, a guerrilha de Porecatu no Paraná e a formação das Ligas Camponesas, sobretudo no Nordeste brasileiro.
Martins, estudando estas lutas no campo, afirma que a revolta de Trombas e Formoso representa a expressão maior dos muitos confli­tos e expulsões no campo brasileiro de Goiás:
"Em Goiás, nessa época, ocorreram conflitos e expulsões que encontra­ram na Revolta de Trombas e Formoso a sua expressão maior. Em 1948, com a estrada Transbrasiliana, as terras do então município de Uruaçu se valorizam. Essa estrada viria a fazer parte da futura Rodovia Belém-Brasflia, iniciada a construção da capital em 1956. No ano seguinte ao da chegada da estrada a Uruaçu, camponeses originários do Maranhão e do Piauí, mas que viviam em Pedro Afonso, no norte de Goiás, também chegaram à região, em grupo, liderados por José Porfírio, e ali formaram posses numa área de terras devolutas. As mesmas terras, entretanto, foram griladas por um grupo de fazendeiros, além do juiz e do dono do cartório local, consumando-se o processo de grilagem em 1952. Inicialmente, são feitas propostas de compra das posses aos posseiros, o que quer dizer compra mediante pagamento unicamente das benfeitorias. Diante da re­cusa são lançados jagunços sobre os camponeses. Diante da resistência são feitas tentativas de transformar os posseiros em parceiros, como ocorria em Minas na mesma ocasião. Nessa altura já havia três mil pessoas na região.. Por essa época, em 1953, violências foram cometidas contra José Porfírio (cuja mulher e filho recém-nascido foram arrancados de casa e a casa queimada, do que resultou a morte da mulher alguns dias depois).
Os conflitos já eram muitos quando chegaram à região, em 1954, quatro militantes enviados pelo Partido Comunista do Brasil, que passaram a viver e trabalhar na área. A partir de então, os camponeses se organiza­ram em Conselhos de Córregos, desenvolveram o trabalho coletivo do mutirão nos momentos de tensão mais aguda, para permitir que grupos de camponeses armados montassem guarda contra ataques de jagunços e da polícia, e fundaram aAssociação dos Lavradores de Formoso e Trombas, encarregada de representá-los e organizá-los, para obtenção da pro­priedade da terra. Quando em 1957 o governo estadual mandou para a região forte contingente para combatê-los, o Partido Comunista propôs um acordo: apoiaria as pretensões do governador Pedro Ludovico de es­tender o seu mandato e apoiaria a candidatura de seu filho, Mauro Borges, à sucessão governamental. Em troca, o governo retiraria as tropas da região, o que foi feito. Com isso, até 1964, a região de Trombas e Formo­so se constituiu num território liberado, de certo modo sujeito a governo próprio, uma espécie de governo popular; o que foi facilitado pela criação do município de Formoso, por solicitação dos camponeses, além da elei­ção de José Porfírio como deputado estadual. Embora o Exército só tenha entrado na região alguns anos depois do golpe, conforme nota oficial publicada nos jornais, já em 1964 os líderes do movimento haviam fugido. Foram presos em 1970 e barbaramente torturados. José Porfírio foi preso em 1972, no Maranhão, durante as batidas relacionadas com o combate à guerrilha do Araguaia. Solto em 1975, em Brasília, desapareceu completamente, havendo a suspeita de seqüestro e assassinato." (Martins, 1981.)

AS LUTAS PELA TERRA NO PARANÁ


As lutas pela terra no Paraná, segundo Martins passam pelas relações entre os latifundiários e o Estado e as muitas falcatruas reali­zadas pelos governantes no exercício do poder contra os camponeses posseiros. Estes conflitos vão conter, como se viu em Trombas e For­moso, a participação do Partido Comunista do Brasil:
"Na mesma época em que começava o problema de Trombas e Formoso, começava também o problema de terras que culminaria com a guerrilha de Porecatu, no Paraná, em 1950. Desde 1946, mil e quinhentas famílias de posseiros, habitando terras devolutas em Jaguapitã, passaram a so­frer o problema do despejo porque o governo do Estado cedera aquelas terras já ocupadas por eles para grandes proprietários. Os despejos vio­lentos levaram à formação de grupos armados que resistiam ou atacavam fazendas. Vários confrontos entre posseiros e polícia ocorreram, com der­ramamento de sangue. A situação se agravou ainda mais porque o gover­nador, envolvido ele próprio em famosas negociatas de terras, procurou os camponeses de Jaguapitã e Ihes propôs transferência segura para outras terras no vale do rio Paranavaí, com casa e transporte. A promessa não foi cumprida.
A essa situação violenta, que se repetia em outras regiões do Paraná na mesma ocasião, veio somar-se a revolta dos lavradores de Porecatu, lo­calidade também no norte do Paraná, não muito distante de Jaguapitã. A situação era ali idêntica àquela outra. Tendo notícia de que o governo pretendia desenvolver na área um projeto de colonização, muitos campo­neses começaram a se deslocar para lá, abrindo suas posses. Na verda­de, sem nenhum respeito pelos posseiros, o governo havia traficado com as terras, vendendo-as a outras pessoas. Nos últimos meses de 1950, devido à ação do Partido Comunista do Brasil, através dos seus comitês regionais de Londrina, no Paraná, e de Presidente Prudente e Assis, em São Paulo, eclodiu a guerrilha de Porecatu, tendo como um dos chefes José Billar. As lutas prosseguiram, com mortos e feridos, até janeiro de 1951 , quando assumiu um novo governador disposto a resolver o proble­ma. Apesar de o governo ter, em 15 de março, declarado as terras de utilidade pública para desapropriação por interesse social (fato que ocor­ria pela primeira vez no país), ainda em junho havia de trezentos a quatro­centos camponeses armados, emboscados nas matas, de onde saíam apenas para atacar. Foram desarmados por uma força policial de duzen­tos e cinqüenta homens. Consta, porém, que o próprio Partido Comunista determinara a cessação da guerrilha."
"Mas é no sudoeste do Paraná, quando Lupion, já envolvido em negocia­tas anteriores de terras, volta ao governo do Estado, que têm lugar os conflitos que culminam com a revolta de 1957, nas regiões de Pato Bran­co, Francisco Beltrão e Capanema. Ali a situação era extremamente con­fusa, pois se tratava de área litigiosa entre o governo da União e o governo estadual. Isso porque, embora as terras devolutas tenham sido transferidas aos estados, em 1891, as terras da faixa de fronteira continu­aram dependentes do governo federal. Ambos os governos fizeram con­cessões de terras na área. Companhias imobiliárias venderam essas ter­ras a colonos gaúchos e catarinenses. Estes, entretanto, apesar de terem pago e de serem, portanto, proprietários, viram-se na situação de possei­ros, além do mais sujeitos a despejo sumário. Toda a sorte de violências foi cometida contra os camponeses da região, arrancados violentamente das terras, que estavam sendo vendidas por companhias colonizadoras, ligadas ao governador, a outras pessoas. Com freqüência essas terras eram negociadas e tituladas em favor de amigos e parentes do próprio governador, que imediatamente hipotecavam os tí­tulos no Banco do Estado, obtendo grossos capitais em cima de terras que ,não lhes pertenciam de fato.
Extrema violência desencadeou-se em toda a região do sudoeste do Paraná em abril e maio de 1957. Conflitos armados ocorreram daí em diante em toda a região, contando os posseiros com o auxilio de vários bandoleiros que viviam na fronteira entre o Paraná e aArgentina. Em outubro houve a revolta, conclamada para resistir a um ataque geral de jagunços da Citla, a empresa ligada a Lupion. Os camponeses formaram Assembléias Ge­rais do Povo em Pato Branco, Francisco Beltrão, Capanema e Santo An­tônio. Juntas Governativas foram eleitas em todos esses lugares. Só em Beltrão, quatro mil camponeses marcharam sobre a cidade. As autorida­des locais fugiram. Estações de rádio regionais foram tomadas. Após ne­gociações com o chefe de policia do estado e com a entrada das tropas da Policia Militar nas várias localidades, as juntas governativas se dissol­veram. Na verdade, a corrupção e o terror continuaram. As questões so­mente começaram a ser resolvidas em 1961, após a saída de Juscelino Kubitschek da presidência da República, pois pertencia ao mesmo partido de Lupion, o PSD. Medidas começaram a ser tomadas apenas no gover­no de Jãnio Quadros, institucionalizadas Rara uma parte da área em 1962, no governo Goulart, quando se criou o GETSOP - Grupo Executivo de Terras do Sudoeste do Paraná, uma instituição com forte presença do Exército." (Marfins, 1981.)

A FORMAÇÃO DAS LIGAS CAMPONESAS
Foi com as Ligas Camponesas, nas décadas de 50 e 60, que a luta camponesa no Brasil ganhou dimensão nacional. Nascidas muitas vezes como sociedade beneficente dos defuntos, as Ligas foram orga­nizando, no Nordeste brasileiro, a luta dos foreiros, moradores, arren­datários, pequenos proprietários e trabalhadores da Zona da Mata, contra o latifúndio.
A origem da expressão "Ligas Camponesas" está relacionada ao movimento de organização de horticultores da região de Recife pelo Partido Comunista do Brasil, durante seu curto período de legalidade na década de 40. Este movimento decorreu do fato de, na época, os sindicatos rurais serem inconstitucionais. A maioria desses núcleos desapareceu com a colocação do partido na ilegalidade. A "Liga" de Ipatinga, fundada em 3 de janeiro de 1946 em Pernambuco, foi uma das poucas que resistiu ao desaparecimento geral.
Na década de 50, mais precisamente no ano de 1954, foi no En­genho da Galiléia, localizado no município de Vitória de Santo Antão, a pouco mais de 60 km de Recife, que praticamente nasceu o movimen­to conhecido como "Ligas Camponesas". A luta dos galileus foi es­truturada contra a elevação absurda do foro, ou seja, contra a alta dos preços dos arrendamentos.

"O Engenho da Galiléia localiza-se em Pernambuco, no município de Vitó­ria de Santo Antão, distante 60 km de Recife, em região de transição entre a Mata e o Agreste. Desde os fins da década de 40, os proprietários dei­xam de explorar a cana em suas terras e passam a arrendá-las. Os 500 ha são arrendados por cento e quarenta famílias, reunindo cerca de mil pessoas. Arrendatários da terra e proprietários dos outros meios de pro­dução utilizam a força de trabalho familiar e combinam a produção de subsistência com a mercantil, produzindo legumes, frutas, mandioca e algodão.
A área média das propriedades é de 3,5 ha e foi impossível reconstituir, através de sistema contábil, a situação econômica dessas famílias que, além da reposição dos meios de produção, devem retirar do rendimento global o pagamento da renda da terra, que é feito em dinheiro: é o foro.
Nesse engenho, no ano de 1954, o aluguel anual estabelecido por hectare era de Cr$ 6.000,00. Na região, no mesmo ano, o preço de venda da terra variava entre Cr$ 10.000,00 e Cr$ 15.000,00 por hectare. Isso equivalia a que o pagamento de dois anos de renda correspondesse ao valor da terra arrendada. Nesse ano, o foreiro José Hortêncio, não podendo pagar os
Cr$ 7.200,00 de renda atrasada que devia, foi ameaçado de expulsão pelo dono da terra. Procurou José dos Prazeres, antigo membro do Parti­do Comunista então dedicado a contatar camponeses em litígio com os proprietários. Este, percebendo que não se tratava de caso isolado, mas que a situação era vivenciada por inúmeros foreiros do engenho, propôs ­lhe a formação de uma sociedade, com o fim de adquirir um engenho, para que todos se livrassem do pagamento da renda e da ameaça de expulsão. Era maio de 1954.
Ao fim do mesmo ano, Hortêncio reuniu um pequeno grupo de foreiros, entre os quais José Francisco de Souza, administrador do engenho, co­nhecido como Zezé da Galiléia, que exercia forte liderança. Sob a orienta­ção de José dos Prazeres, fundaram a sociedade, cuja diretoria estava assim constituída: Presidente - Paulo Travassos; Vice-Presidente - Zezé da Galiléia; 1° Secretário - Oswaldo Lisboa; 2° Secretário - Severino de Souza; 1° Tesoureiro - Romildo José; 2° Tesoureiro - José Hortêncio; Fiscais - Amaro Aquino (Amaro do Capim), Oswaldo Campelo e João Virgílio. A associação - Sociedade Agrícola de Planta dores e Pecuaristas de Pernambuco - SAPP- obteve seu registro após um mês. Do ponto de vista legal, caracterizou-se por constituir-se numa sociedade civil benefi­cente, de auxilio mútuo, cujos objetivos eram, primeiramente, a fundação de uma escola e a constituição de um fundo funerário (as sociedades funerárias eram comuns na região) e, secundariamente, a aquisição de implementos agrícolas (sementes, inseticidas, adubos, instrumentos) e reivindicação de assistência técnica governamental." (Rugai Bastos, 1984.)

No entanto, o movimento das Ligas Camponesas tem que ser entendido, não como um movimento local, mas como manifestação nacional de um estado de tensão e injustiças a que estavam submeti­dos os trabalhadores do campo e as profundas desigualdades nas condições gerais do desenvolvimento capitalista no país:

"As ligas se espalharam rapidamente pelo Nordeste, contando, de início, com o apoio do Partido Comunista do Brasil e com severa oposição da Igreja Católica. Elas surgiram e se difundiram principalmente entre foreiros de antigos engenhos que começavam a ser retomados por seus proprie­tários absenteístas, devido à valorização do açúcar e à expansão dos canaviais. Desde os anos 40 os foreiros vinham sendo expulsos da terra ou então, como vimos, reduzidos a moradores de condição, passo para se tornarem trabalhadores assalariados não-residentes.
Na verdade, as ligas surgiram no contexto mais amplo não só da expulsão de foreiros e da redução ou extinção dos roçados dos moradores de usi­na, mas também no contexto de uma crise polftica regional. Essa crise se particularizou numa tomada de consciência do subdesenvolvimento do Nordeste e particularmente numa ação definida da burguesia regional no sentido de obter do governo federal não mais uma polftica paterna lista de socorros emergenciais nos períodos de seca grave, mas sim uma efetiva polftica de desenvolvimento econômico. Isso queria dizer, uma política de industrialização do Nordeste. O problema da miséria dos camponeses e do seu êxodo para o sul era explicado como resultado do latifúndio subutilizado, que impede a ocupação da terra por quem dela precisa. Uma política regional de desenvolvimento baseado na industrialização deveria sustar e inverter o círculo vicioso da pobreza de uma agricultura mo­nocultora e latifundiária. É assim que surge a Superintendência do Desen­volvimento do Nordeste e é assim que surgem alianças políticas envol­vendo extremos tão opostos como o Partido Comunista e a União Demo­crática Nacional, o partido por excelência da burguesia. Em Pernambuco, essa aliança de "centro-esquerda" permite a conquista eleitoral da Prefei­tura de Recife e, posteriormente, a conquista do governo do Estado por Cid Sampaio, um usineiro." (Martins, 1981.)

A ULTAB E AS LUTAS DAS LIGAS CAMPONESAS
A compreensão do processo de expansão nacional do movimen­to das Ligas Camponesas tem que ser entendido, também, no seio da discussão capitalista no Brasil, entre as diferentes tendências políticas da esquerda. Fundamentalmente, com a orientação do Partido Comu­nista do Brasil, é criada em 1954 em São Paulo a ULTAB - União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil -, com a finalidade de coordenar as associações camponesas então existentes. Esta organi­zação vai funcionar como instrumento de articulação e organização do Partido, na condução e unificação do processo de luta camponesa no seio do processo de luta dos trabalhadores em geral no pais. Este processo deveria caminhar no sentido da revolução democrático-bur­guesa, como etapa necessária para a revolução socialista.
Elide Rugai Bastos, assim se refere à ULTAB:

"O fim da década de 50 marca a existência de várias associações de trabalhadores por todo o Brasil. Embora o registro legal dos sindicatos de trabalhadores rurais só se possa fazer a partir de processo pedindo a aplicação do Decreto n° 7.038 de 1944, o que dificulta sua existência, já em 1956 o jornal Terra Livre, órgão da ULTAB, assinala a existência de 49 sindicatos registrados oficialmente. Em 1959, num balanço realizado pela mesma ULTAB, relaciona-se a existência de 122 organizações indepen­dentes, reunindo 35 mil trabalhadores rurais; e 50 sindicatos, reunindo 30 mil..."
Entretanto" as cisões e dissidências instauradas no seio do PC, sobretudo após o 111 Congresso de Lavradores e Trabalhadores Agrí­colas no Brasil, realizado em 1961 em Belo Horizonte, vão marcar o inicio das divergências entre os movimentos da ULTAB - mais na dire­ção da sindicalização - e as ligas, com suas propostas de luta por uma reforma agrária radical. .
Martins (1981) explica o contexto social em que a dissidência se
dá:

"Apesar da oposição dos senhores de engenho, agora reduzidos à condi­ção de meros fornecedores de cana das poderosas usinas de açúcar, as ligas camponesas e, logo depois, um forte movimento de sindicalização rural têm lugar na região, garantido num primeiro momento pelo enfraque­cimento político desses antigos coronéis.
Havia dois grupos distintos de trabalhadores a serem mobilizados e orga­nizados. De um lado, os foreiros das terras de engenhos, camponeses em vias de expulsão. De outro lado, os moradores das usinas, trabalhadores em vias de converterem-se definitivamente em assalariados, perdendo as características camponesas, além daqueles que já estavam efetivamente reduzidos à condição de assalariados, expulsos de seus roçados para as pontas de ruas, os povoados próximos às usinas. Embora formalmente reconhecidos pela Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943, os trabalhadores rurais não gozavam, no país inteiro, o direito de sindicalização. O processo era e é muito complicado, porque a fundação e legalização de um sindicato depende de reconhecimento do próprio Ministério do Traba­lho, ao qual o sindicalismo está subordinado. Francisco Julião, o advoga­do e deputado socialista que os camponeses da Galiléia procuraram para tratar da defesa dos seus direitos, observa que era mais viável organizar uma sociedade civil e não um sindicato, porque para isso as formalidades legais eram muito simples, bastando registrar a associação no cartório mais próximo. Isso tornava desnecessário o reconhecimento do Ministério do Trabalho, que não era provável, e garantia a legalidade da ação dos camponeses. Julião justifica, também, a superioridade do foreiro em rela­ção ao trabalhador de usina, como categoria de mobilização mais eficaz. É que os camponeses produzem os seus próprios meios de subsistência, têm condições de suportar melhor os confrontos com os fazendeiros, têm liberdade de locomoção. O mesmo não acontece com o trabalhador de usina, sujeito ao salário, sem mobilidade, sujeito ao favor da moradia."

A marca da violência, entretanto, sempre esteve presente no pro­cesso de luta das Ligas Camponesas. Junto com o crescimento das greves, registra-se o assassinato das lideranças dos trabalhadores:

",.. entre 1954 e 1962 ocorre em Pernambuco apenas uma greve entre os trabalhadores rurais (cortadores de cana em um engenho em Goiana, em outubro de 1955). O ano de 63 assinala a ocorrência de 48 greves, sendo duas delas gerais (a nível estadual). Mas crescem também as ações re­pressivas: ocorre em janeiro desse ano o assassinato de cinco campo­neses na Usina Estreliana; entre agosto e setembro são assassinados Jeremias (Paulo Roberto Pinto, Uder trotskista) em També, Antônio Cícero, em Bom Jardim, o delegado sindical da Usina de Caxangá. Na Paraíba, além do assassinato de João Pedro Teixeira, em Sapé, ocorrem choques, com várias mortes, ainda em Sapé e Mari." (Ruga; Bastos, 1981.)

Dentre a onda de violência, o assassinato de João Pedro Teixeira, Ilder e camponês da Liga do Sapé - Associação dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Sapé - foi um dos que ganhou projeção nacional, pois essa liga era uma das maiores do Nordeste, com mais de sete mil sócios.
A imprensa escrita deu em manchete: "Líder camponês morto numa emboscada com 3 tiros de fuzil', "cinco mil camponeses foram ao enterro de João Pedro mostrar que a luta continua', etc. Usineiros e latifundiários mandantes do crime ficaram impunes. Eduardo Coutinho muito bem retratou este episódio em seu filme "Cabra marcado pra morrer" .
O movimento militar de 64, que assumiu o controle do país, ins­taurou a perseguição e "desaparecimento" das lideranças do movi­mento das Ligas Camponesas, e sua desarticulação foi inevitável. Deu­-se, aí, o início de um grande número de assassinatos no campo brasi­leiro, conforme os dados levantados nos dossiês: Assassinatos no campo: crime e impunidade - 1964/1986 - publicado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, Conflitos de Terra - 1986, elabo­rado pelo MIRAD - Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrá­rio e Conflitos no Campo - Brasil 1987, 1988, 1987, 1990, 1991, 1992, 1993 e 1994 - publicados anualmente pela CPT - Comissão Pastoral da Terra.

Fonte: Ariovaldo Umbelino Oliveira - A Geografia das Lutas no Campo -Editora Contexto.

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