terça-feira, 13 de outubro de 2009

Herança colonial é “turbinada” pelo agronegócio

É consenso que o Brasil possui concentração de terras, excesso de latifúndio. Mas sabe-se também que essa concentração aumentou. O Censo Agropecuário 2006 (que comparou dados de 1996 a 2006) aponta que as pequenas propriedades (com menos de 10 hectares) ocupam apenas 2,7% da área ocupada por estabelecimentos rurais. Já as grandes propriedades (com mais de mil hectares) ocupam 43% da área total. Mas em quantidade, as pequenas propriedades representam 47% do total de estabelecimentos rurais no país, enquanto os latifúndios correspondem a apenas 0,91% desse total.
Sobre o agronegócio, um dado sintomático também em relação à concentração de terras. A soja foi a cultura que mais se expandiu no país na última década. No período entre 1995, quando foi realizado o levantamento anterior, e o censo atual, a soja apresentou um aumento de 88,8% na produção. Em entrevista, Osvaldo Russo, fala do aumento da concentração de terras no Brasil, da soja e de outros assuntos. Ele é estatístico, diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e coordenador do Núcleo Agrário Nacional do PT. Foi presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) entre 1993 e1994.

Brasil de Fato - A impressão que se tem é a de que entre 1996 e 2006 houve muita luta social no campo, mas mesmo assim aumentou a concentração. Por quê?
Osvaldo Russo - A concentração escandalosa de terras no Brasil é o retrato da nossa herança colonial e escravista. Em 1996, deu-se o Massacre de Corumbiara (RO). Em 1997, ano do Massacre de Eldorados do Carajás (PA), deu-se a Marcha do MST (100 mil) que ganhou grande destaque nacional e internacional. A mobilização social foi intensa a partir de 1993, quando foram promulgadas a Lei Agrária e a Lei do Rito Sumário, que regulamentaram o capítulo da reforma agrária da Constituição de 1988. No governo FHC, entretanto, foi grande a criminalização do movimento sindical e dos movimentos sociais, em especial do MST.

Brasil de Fato - Ficou provado com o estudo que a pequena propriedade emprega e produz muito mais que o latifúndio. Qual será o peso político dessa informação para que o governo se sinta mais pressionado a fazer a reforma agrária de fato ou, ao menos, faça a atualização dos índices de produtividade?
Osvaldo Russo - O Censo Agropecuário de 2006 confirma aquilo que pesquisadores e ativistas vêm dizendo: apesar de representar pouco mais de 30% do total das áreas, os pequenos estabelecimentos respondem por mais de 84% das pessoas empregadas. Os dados também mostram que esses trabalhadores fazem parte da agricultura familiar, cujos 12,8 milhões de produtores representam 77% do total de pessoas ocupadas. As informações do IBGE revelam ainda que a agricultura familiar é mais eficiente na utilização de suas terras, gerando um valor de produção de R$ 677 por hectare, enquanto que a não familiar gera um valor de R$ 358 por hectare.
Acredito que esses dados podem contribuir para que governo e sociedade mobilizem e acelerem as mudanças necessárias nas políticas para o campo, dando maior ênfase à reforma agrária e à agricultura familiar. Isso deve ser expresso em maiores recursos para o setor e na adoção de novos índices de produtividade, já que os atuais estão defasados 34 anos.

Brasil de Fato - Os serviços públicos de extensão rural (auxílio técnico) foram desestruturados especialmente na década de 1990. Por quê?
Osvaldo Russo - Em primeiro lugar, a extinta Embrater estava aglutinando, como em geral e historicamente as empresas públicas e estatais, uma cultura de política pública de Estado voltada para os interesses nacionais e da maioria do povo brasileiro. O sucateamento da assistência técnica e da extensão rural fez parte da política neoliberal de liquidação do Estado promovida pelos governos Collor e FHC. Em segundo lugar, a desestruturação da assistência aos pequenos agricultores favoreceu ao agronegócio.

Brasil de Fato - Em que pesa mais negativamente a expansão de 63,9% na área de soja no Brasil? É uma cultura que mais amplia a concentração de terras e a dependência econômica num único setor? Mais que a cana?
Osvaldo Russo - A expansão da monocultura da soja, da pecuária extensiva e do agronegócio, ao lado da ação criminosa de grileiros e madeireiros na Amazônia e no Centro-Oeste é a responsável pelo crescimento do desmatamento e pela concentração de terras na região. O cultivo da cana-de-açúcar ganhou escala preocupante em São Paulo e em outros estados, o que pode vir a competir com a produção de alimentos internamente se não houver uma regulação, sem o que haverá danos para a soberania alimentar do país.

Brasil de Fato - Foi verificado no censo um intenso uso de agrotóxicos nos estabelecimentos rurais brasileiros. A baixa taxa de assistência e a falta de conhecimento contribuem com o excesso de uso de agrotóxicos?
Osvaldo Russo - De um lado, o modelo agrícola hegemonizado pelo agronegócio, com uso de agrotóxicos e sementes transgênicas, é responsável pelo envenenamento da agricultura brasileira. De outro, a ausência de educação ambiental, desde as escolas até a mídia, cria um vazio na conscientização da sociedade, onde o lucro e a ganância prevalecem em detrimento das necessidades de uma alimentação saudável da população brasileira.

Brasil de Fato - Qual década foi mais importante para que tenha ocorrido o aumento da concentração de terras? A de 1990 ou a partir dos anos 2000?
Osvaldo Russo - O quadro de concentração fundiária é endêmico na história brasileira. O censo do IBGE mostra que em 2.600 municípios a concentração diminuiu, mas nem por isso ela deixou de ser elevada e de crescer nacionalmente. Os dados revelam a concentração tanto na década de 1990 quanto nesta metade dos anos 2000. Ainda que de 1 milhão de assentamentos realizados no Brasil desde a criação do Incra em 1970, mais da metade se deu de 2003 pra cá, e de o Pronaf ter crescido de pouco mais de R$ 2 bilhões, na safra 2002-2003, para R$ 15 bilhões previstos para a safra 2009/2010, ainda assim nos preocupa a articulação de interesses entre o agronegócio, as grandes empresas multinacionais de insumos e alimentos e os bancos, o que anula qualquer esforço de distribuição da terra.

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